Fazia um calor de deixar a velha árvore se abanar à própria sombra.
Chovera um cadinho a noite passada. Nada de fazer enxurrada descer destrambelhada.
Apenas um chuvisco morno. E na manhã seguinte o secume da terra implorava por mais água a descer do céu.
Chico, conforme era do seu costume, antes que as galinhas cantassem já se punha de pé.
Naquele pós feriado, quem diz que na roça se tem tempo para descansar. Os tais feriados são como os outros dias. A vacada muge de fome beirando o curral. A bezerrada faminta não espera, desesperada, a hora de entrar na sala de ordenha pra mamar as tetas a elas destinadas. E o velho Chico, depois de passar uma água morna na cara ainda sonolenta, quase não dormiu a noite devido ao calor que fazia, sem tempo de coar um cafezinho magro. Deixa sua casinha modesta depois de calçar sua botina gomeira que range de calor já que estava dependurada na trempe do velho fogão a lenha.
Depois de ordenhar as vacas. De satifazer-lhes a fome. Pela metade. Faltava a ração. Ainda tem de lavar o curral empestado pelo estrume molhado. O não tão velho Chico, pois quem o vê naquela idade não lhe dá nem a metade do que ele em verdade tem. Naquele dezembro que se avizinha ele aniversaria sessenta e poucos que se parecem muitos. Mas nem tempo de assoprar as velinhas ele tem pois o que não lhe falta é serviço.
Assim se desenrola como rolha destampada da garrafa de vinho que nem faz tlec a vida do velho Chico. Pois vinho não é como champanhe que faz a rolha estourar e vai ao teto.
Entre percalços de vez em quando de pés descalços pois sua botina furou na sola e não tem conserto. Mesma assim a vida que Chico leva não a troca por nada desse mundo. Um dia a ele perguntei se desejava mudar pra cidade. Ele, num muxoxo, com o olho roxo por ter dado uma estopada num mourão de cerca, me respondeu malcriado, meio enfezado dada a minha pergunta mal posta: “quer saber? Nem se vosmecê me vorta meia carreta de esterco curtido não faço a catira. Prifiro continuá minha vidinha descumplicada de mardade. Aqui sô dono do meu pedaço. Se argúem robá uma das minhas vaca logo ele devorve. Nem que seja a podê de revorve. E nois num leva desaforo atrás da oreia. E se argúem roba argum pertence da gente ai dele. Tem seu saco jogado aos cachorro morto de fome”.
E eu em repeti a proposta e fui embora.
Noutro dia, era o dia depois desse feriado de ontem, em visita ao velho amigo Chico. Ele estava entregue a sua rotina costumeira.
Com um semblante mais desanuviado dada á chuva da noite de ontem.
Agora o céu já se faz claro. Volta o calor que incendeia. Coisa de frigir ovos na terra seca.
Quis saber do amigo Chico sobre o que ele achava do feriado que fatiou a semana ao meio. O que ele pensava sobre a tal proclamação da república brasileira.
Naquele começo de manhã. Do dia dezesseis de novembro. Encontrei o amigo Chico mascando um palito de fósforo. Bom que se diga apagado.
Ele me pareceu meio nervoso.
Como a vó falecida atrás do toco.
“Chico”! Tentei tirá-lo do mau humor em que ele se encontrava. “Alegre-se amigo. Não se lembra do dia de ontem? Até parece que foi ontem que proclamaram a nossa independência. E a sua. Quando vai ser”?
Ele me respondeu mais uma vez malcriado.
“Ah! Vai catá coquinho atrás da bananeira. Se não quisé vai pronde mió achá. Se não tem muié fica com home. Ocê mais parece lobisome pelado. Vê se te acha. Se não vem que num tem. Se que sabê o que acho da tar procramação eu procramo que num acho nada. Aqui sô dono do meu pedaço de chão. Aqui eu mando e não aceito orde de ninguém. Se o tar de Dom Pedro vié cheretá por aqui sorto meus cachorro nele. E quero vê ele falá grosso cum mais eu! Meto aquela espada no fiofó dele. Desde novinho euzinho já procramei minha própria independença. E num dependo de ninguém pra tirá leite. Só me aperreia quando num chove. Quando o sol esquenta me esquenta a molera. Dá-me pena de ver minha rocinha de milho enrolá as foinhas. Antes tão verdinha e agora amarelinha. Sardade dos tempos bão quando chovia grosso na estação da chuva. Agora tá tudo mudado. Só farta home virá muié. Se não virô num farta nada. A minha república é aqui memo. Num tenho cavalo pra impinar e nem grito para gritar. Tenho apenas uma mula branca. Ela é boa pra puxá carroça. Num impaca e nem faz troça da situação de nosso país. Nois num tem tempo pra pensar em procramação. Que se foda quem faz greve e farta ao trabaio. Bença maior que nois tem”.
Uma vez na cidade comigo pensei. E não é que a proclamação do Chico Bento é que mais nos convém?