Ajoelhar-se diante de alguém, tornar evidente a nossa admiração, beijar os pés, como a Bíblia professa, diante de santos, figuras veneráveis que se mostram na intimidade de igrejas, seja de que credo for, tentar ir pelo mesmo caminho percorrido em vida, devem ser pessoas, figuras humanas de valor elevado, as quais de fato merecem tais honrarias.
Uma dos tais exemplos que até hoje persigo, mesmo à distância, tomara um dia ela se apequene, é o do meu pai. Homem íntegro, transparente, consequente e respeitado por todos que com ele conviveram, que aos setenta e sete anos nos deixou, a mim e a meu irmão, e a outra irmã querida. Minha mãe sentiu-lhe a ausência por alguns poucos anos, mas logo o seguiu, não apenas no exemplo, mas também no mesmo rumo desconhecido para onde todos iremos, num dia perto ou mais tardar anos depois.
O ato de persignar-se apenas acontece comigo ao passar pela igreja principal da minha querida Lavras em horas tempranas. Quando muita gente ali comparece, seja para uma missa, a um casamento, evito entrar de repente. Ao passar pelo logradouro sossegado, onde santos em suas imagens parecem puxar-me a orelha, poucas vezes meus pais assim o fizeram, oro contrito, de joelhos, cabeça baixa, peço por todos que ao meu lado convivem, agradeço as graças recebidas, a saúde ainda em boa companhia, dos meus filhos, quem com eles constituiu família, a todos que precisam da sua benção, e parto em direção ao meu consultório, local de atender consultas, e, principalmente de escrever, antes que o branco da roupa do médico revele o esculápio que ainda me considero.
Mas essa pessoa, objeto da inspiração desta crônica, a conheço de poucos anos. Seriam três, quatro apenas? Não importa. O que importa é que ela, atleta renomada, um dia ela me disse ser engenheira agrônoma, formada nesta mesma cidade que adotei carinhosamente a partir de 1955, aos cinco anos, menino, sonhador, moleque artioso, que brincava na Rua Costa Pereira quando ela era calçada de paralelepípedo, antes de terra batida, não asfaltenta a exemplo de hoje.
O local onde pela primeira vez nela passarinhei meus olhos irrequietos foi na academia onde se exercitam, quase todos os dias, centenas, talvez milhares de pessoas.
Mais uma vez o LTC, clube da mesma idade minha, é citado nas minhas crônicas. Morei logo ali defronte, na casa que ainda existe, de número 152.
Assim que a vi, correndo ao meu lado, em outra esteira, só que numa velocidade dez vezes maior, sem demonstrar cansaço ou fadiga, logo pensei, cá dentro de mim: ela não é apenas atleta de fim de semana, ou simplesmente, como eu, malha para perder a barriga, encompridar o fôlego, ou ver, nos exames laboratoriais, o resultado dos tais ir de bem a melhor.
Foram dez quilômetros percorridos naquele passeio rolante. Ao lado do meu, que parou na metade.
Depois, ao pensar que minha atleta preferida iria parar, de volta a casa, para, ou lavar a louça do jantar, ou bem cuidar do marido, de um filho menor, ela, de quem tento seguir o exemplo, tenho vontade de me persignar, ainda malha nos ferros pesadamente, e depois se lança à piscina, em outro traje, depois de uma ducha fria, para terminar a rotina, daquela tarde, no dia seguinte recomeça tudo de novo, nada bem uns dois, três quilômetros, em braçadas em ritmo de lontra faminta, indo e voltando naquela raia semi-olímpica.
Um dia, ao subir pela rua principal, de volta do atendimento num postinho de saúde desapetrechado de quase tudo, menos do desejo de acertar os diagnósticos, vi, essa mesma atleta de escol, descendo pelo mesmo passeio, era quase tempo de matar a fome na metade do dia.
Assim que ela me viu seu semblante simpaticíssimo, pele morena, cabelos negros, sorriso destrancado de dentro de uma boca angulosa, corpo esguio, sem ser alto ao exagero, pernas fortes por inteiro, dentes perfeitos, se abriu.
Ao mostrar a ela meu último livro, a doce atleta viu, na capa, o nome Mugido de Vaca e Cheiro de Curral, e sem pestanejar o adquiriu. A ela fiz uma singela dedicatória, não me lembro quais palavras usei. Não sei ainda se ela o leu.
Soube depois, no mesmo clube vizinho do meu passado, onde jogava tênis com meu pai e meu filho, que ela, a triatleta de primeira linha, já foi, e ainda o é, a primeira ranqueada no triatlo feminino brasileiro, percebe, de patrocínio, a soma mixa de pouco menos de dois salários mínimos.
Tentei interferir nos seus ganhos com uma empresa de ponta em minha cidade. A mesma empresa enorme a ela afirmou que os recursos destinados ao esporte estavam suspensos no decorrer do ano em curso. Que ela voltasse o ano próximo.
De vez em quando nossos caminhos se cruzam no mesmo clube daquela rua de tantas lembranças ternas. Ela, sempre sorrindo, demonstrando alegria e simpatia naquele ambiente saudável. E eu sempre pilheriando com os colegas de academia.
Laura Mira, que bem poderia ser o nome título desta crônica de hoje, triatleta premiada, mundo afora, que corre, pedala, nada, com a desenvoltura de uma garça morena, é a tal gente grande, por quem tenho, quando a vejo, o desejo fecundo de me persignar, de seguir-lhe o exemplo, como acontece com meu saudoso pai…