Agradecido

De tempos pra cá, principalmente depois de atingir a idade da maturidade quase plena, ainda cônscio de quem sou, embora por vezes paire a dúvida de qual de mim persista, se o médico urologista, se o atleta corredor de longas distâncias, se o poliglota que teima em se fazer entendido no português de Portugal e o os interlocutores do outro lado fechem os ouvidos ao entendimento, se o escritor fecundo que se divide entre o cronista e o romancista cheio de sonhos pueris, se o fazendeiro do qual se provou a incapacidade total de discernir entre uma vaca boa de leite e outra que apenas engana, se o avô de primeira viagem é sinônimo de felicidade total ou pela metade, quase sempre, quando alguém me faz um favor, pequeno ou de maior tamanho, me dá um presente inesperado, mesmo não sendo dia do meu aniversário, respondo, sem pestanejar: “agradecido”.

Por falar em neto, foi há menos de oito meses que senti, quase ovulei (não se trata de ovulação, coisa de fêmea, e sim de orgasmo) acompanhei, olhos embevecidos de contentamento, o vir ao mundo de uma linda criança, filho de minha filha mais nova e do meu genro compenetrado, ao revés de mim que sou meio alopropado.

Tive a audácia de acompanhar passo a passo a cesariana. Desde a incisão primeira, a hemostasia eficiente, a secção de cada bainha que envolve a pelve feminina, até chegar ao útero cheio, que, de repente, sem eira nem beira, de lá saiu meu primeiro neto, besuntado daquele líquido protetor, qual o amor da mãe que o gerou. Foi um instante mágico.

Depois, oito meses a seguir, meu neto já com quase um aninho, o Theo já anda de gatinho, balbucia coisas ininteligíveis, parece já me conhecer, pois quando chego ele oferece os bracinhos e sorri, fui testemunha ocular do quanto os netos podem fazer a alegria dos avós e da mesma forma desmoronar com eles.

Aqui perto de onde estou, amanhã parto de novo a realidade de um cotidiano de muito trabalho e exercício físico, preciso estar em forma para enfrentar a meninice do bebê Theo, suas diabruras e lambanças a hora da papinha, passa o carnaval meu irmão de sangue aqui juntinho, nascido cinco anos depois de quando eu vim deslumbrado observar minha morada fora do útero protetor de minha saudosa mãe.

Fred, embora aos sessenta e dois, ao dizer a ele que se parece o meu pai, ele ri, ironiza, mas depois, ao ver a minha desenvoltura no correr e nadar, ao mirar a face nossa estampada no espelho, não tem como não dar o braço a torcer. Acaba concordando, não sorri mais. Essa opinião é corroborada por todos que nos conhecem, mesmo quem nos lança os olhos no momento presente.

Fred em verdade está semi corroído pelas traças e cupins dos anos. Mais calvo do que eu, sempre com sono e mostrando cansaço, embarrigado como ficou minha filhota linda ao final da gestação, em sua face branca as rugas não têm espaço para caminhar, no seu pescoço não cabem mais papadas que as minhas que quase não se percebem.

Antes pensava que a razão de tantos sinais de longevidade fossem devidos ao fato de morar a anos numa cidade grande. Belo Horizonte não é tão espichada quanto São Paulo ou Rio de Janeiro, mas é de fato bem maior do que a querida Lavras, onde deixo o carro na garagem e só ando pelas pernas fortes.

Mas neste final de semana acabei concluindo que o motivo é outro.

Na casa do lado, onde a família do Fred está, não dão sossego quatro pestinhas ululantes e feericamente irrequietos pimpolhos.

São dois filhotes da minha sobrinha Renatinha e dois do outro sobrinho Fernando.

Fred hoje dormiu aqui na minha casa. Ou melhor, apagou. Tentei jogar sinuca com ele ontem. Ele mal suportou o peso do taco. Quase desabou na mesa forrada de feltro verde.

Aos trancos e desbarrancos acabei levando meu irmão ao leito. Foi preciso guinchá-lo na escadinha curta, onde quase ele acabou dormindo em pé.

Hoje, ao vê-lo acordar, um pouco melhor, pelo menos respirava, vivo, fui dar uma voltinha com ele na orla da represa de Camargos. Eram apenas dois ou menos quilômetros. E ele acabou caindo nos primeiros metros.

Agora, vinte minutos para as oito, de novo fui ver o estado lastimável em que o Fred estava.

Pilhei-o enrolado a uma ninhada de quatro netos. Todos pulando sobre a sua pobre barriga redonda. Os mais velho enfiava uma mangueira enorme dentro da sua traquéia. O do meio derramava água gelada sobre os seus pés frios. O terceiro, uma linda menina, levada da breca, fazia do desiludido irmão de vaca da vez. A quarta, ainda bebê, de nome Clarinha, a derradeira neta (ainda bem), acabou por vomitar em sua boca aberta, de sono, todo o leite ingerido segundos antes.

Tentei acudi-lo a tempo. Não foi possível. Infelizmente tive de levar meu irmão ao hospital, onde está internado até hoje, não sei se ele vai sobreviver ao martírio de tantos netos juntos.

Agora, prestes a ver a manhã virar dia alto, caso alguém me oferecer outro neto, vou recusar. Imediatamente veloz. Com um sonoro e cordial – agradecido.

Tenho dito e não repito. Amém.

 

 

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