O “véio da tronqueira”

Tem gente, e muita, que mal sabe que chuva faz bem, não dá catapora nem faz coçar no traseiro, que quando cai de mansinho, sobretudo nos ares da roça faz embarrigar o gado, aquela chuvinha mansa, calminha, chamada de criadeira, pode fazer barro, mas é muito melhor que respirar poeira, que nos entra pelas narinas provocando alergia e um carro de boi de doenças respiratórias, que apenas o pneumologista sabe tratar.

Um dia afirmei, sem ser ainda comprovado nos compêndios dos entendidos, que, no viés do qual as coisas caminham, quando parte expressiva da população engrossa a estatística de quem sai da roça em direção às áreas urbanas, quando, tomara não seja amanhã, ou depois, todos nós, homens e mulheres vamos ter de nos submeter à dieta escura, dura, quente nos dias de sol, chamada de dieta asfáltica.

Tem muito menino da cidade, aquelas pobres criancinhas criadas em creches, ou deixadas com a babá no apartamento de menos de vinte metros quadrados, que apenas viram, outras nem este prazer tiveram, vacas, bezerros, porquinhos e cavalos, em fotografias e desenhos mal assinados em revistas pornográficas (isso é por minha conta).

E os pais, preocupados com a crise que persiste em perdurar, não têm tempo de levar os filhos à rocinha encantada, como a minha, no município de Ijaci, interior do interior das Minas Gerais.

Um dia levei um senhor, de sobrenome aparentado ao meu, menos cinco anos rodados, que vivia há tempos, desde quase quando nasceu, lambendo o asfalto, respirando poluição, gastando de gasolina o que eu gasto no supermercado o mês inteiro.

A vida deste hoje senhor, não sempre foi assim, era da casa pro trabalho, quantas horas perdidas passava olhando fixamente o computador, até virar esse trapo (ele é menos longevo que eu cinco pequenos anos), mas parece meu pai. Não queria dizer avô.

Foi na manhã de hoje, dia um do carnaval, feriado espichado nacional, que o levei a conhecer, em carne, ou melhor, barro, menos poeira, o verde se vestindo em todos os matizes possíveis, as goiabas virando comida de bichos, as vacas expelindo as crias, ficando as placentas dependuradas, os porcos engordando depois de capados, as galinhas vendo, extasiadas, ninhadas de pintinhos amarelinhos eclodirem dos ovinhos caipiras, um cenário idílico, digno de ser retratado num quadro de um grande pintor à moda antiga.

Antes das sete dessa manhã de carnaval recebi um whatsup dele: “devido à chuva que cai de mansinho, não poderíamos adiar a ida a sua roça”?

Simplesmente respondi: “tô saindo”. E fui.

Ao passar na casa onde ele estava, à hora combinada, o véio, desculpe-me tomar a liberdade de nomeá-lo assim, caía uma chuvinha daquelas de encher os olhos de lágrimas qualquer sujeito nascido e criado na roça.  Menos do véio da cidade.

A chuva continuou miúda durante todo o trajeto até a roça perto de Ijaci.

O véio logo afivelou-se com o cinto de segurança, fechou a janela da minha pratinha valente, com receio de constipação, fechou os dois olhos, leu uma passagem da bíblia, seu livro de cabeceira, ele não aprecia os garranchos que escrevo, e foi só. Ou me teria esquecido de algo mais? Não sei. Fica pra depois.

Uma vez chegados àquele lugar onde passo horas felizes, me olvido do meu alemão ainda imberbe, do italiano incipiente, do inglês mais corrompido, do francês très chique, do espanhol sem nenhuma influência no que escreveu o grande Cervantes, o tal véio, quando me viu, boquiaberto, comer dois pães recheados de ovos caipiras, com café passado na hora, foi logo ao banheiro, acredito não foi vomitar, e sim desaguar os intestinos, ele estava com dor de barriga, só de ver a água barrenta da minha pequena represa submersa pela floresta de taboas frescas.

A chuvinha linda ainda descia dos céus. Que visão maravilhosa era aquilo.

Intimei ao véio a ir a pé, por aquela estradinha linda, cercada pelo lado direito de pezinhos de eucalipto recém- plantados, enfileirados qual soldados de um batalhão, soldados rasos que talvez um dia chegassem a coronéis ou cabos. Ela dava numa casa beira- lago, onde penso passar meus derradeiros dias escrevendo o romance da minha vida. De qual delas? Ainda não sei.

Não precisa dizer que o cansado, preocupado em não pisar com o tênis novo o estrume fresco de vaca, véio, declinou da proposta melindrosa, para ele, não pra mim, acostumado a correr distâncias longas ao exagero, que apenas os veículos motorizados são capazes de percorrer.

E acabamos indo de caminhoneta mesmo. Trata-se de um percurso de menos de um quilômetro.

Foi quando apareceu uma tronqueira no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma tronqueira, não uma pedra como cantou Drummond.

O véio se mostrou embasbacado com aquele varal de arame, com uma pontinha segura num mourão de cerca e a outra apenas amarrada no outro. Levemente, sendo preciso, para que ela se abra, um leve movimento, tirando uma ponta de arame liso, não farpado, da cabeça do esteio enterrado no chão.

Foram duas tentativas de abrir a tronqueira, fácil de deitar no chão.

Quando pensava que o “véio da tronqueira”, como passou a se chamar, a partir de então, conseguiria fazer o previsto, o imprevisto sucedeu.

Caiu um pé d`água do alto, de tal envergadura, que um enchentão assucedeu.

Até hoje não sei qual o destino do enlutado “véio da tronqueira. Se ainda vivo, ou foi levado pela chuva, a algum lugar, onde, daqui não se permite ver, um lugar lindo, poético, lírico ao extremo.

Onde as crianças, mesmo as nascidas e criadas em cidades grandes, aprendam de onde sai o leite, por que o leite, mesmo sendo branco, da vaca preta, que vaca de três peitos não dá leite como a de quatro, que verdura não nasce pura em terreno areento, que gente nascida na roça, aquela de mãos caludas e tez sapecada de sol, tem o mesmo e igual valor, embora não pareça, à gente rica, tida como fina, que costuma dar calote, mesmo com duplicata assinada, nas tais gente rude que não se acostuma à cidade, nem que a tábua rache.

Hoje sábado, dia um do carnaval, tive, enfim, notícias do “véio da tronqueira”. Ele se remoçou, depois da visita de hoje, salvo que foi da chuvadonha que caiu trasanteontem, ainda bem…

Sabem qual o nome dele? Fred Ozanam Rodarte de Abreu. Irmão meu.

 

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