Um passarinho, destes que nos visitam as varandas interioranas às tardes , confidenciou-me: ” Quem escreve um livro constrói um castelo. Quem o lê, passa a habitá-lo “.
Matutando ali no balanço gostoso da rede preguiçosa , como eu , veio-me à mente logo um menino- passarinho, contador de causos e estórias, escrivinhador de coisas bonitas, que tem os pés banhados nos regatos cristalinos que descem cantarolando morro abaixo e a alma branquinha como a fumaça que foge do fogão de lenha, deixando aquele familiar e indefectível cheirinho suspenso no ar de café passado na hora. Um menino que me faz pensar em um jardim em flor e nos bem-te-vis que ali se aninham e brincam festivos ao se reconhecerem no alarido dos seus estridentes mas convidativos ” bem te vi ” ! Um menino que dá leveza à leveza.
Mas Paulo Rodarte é também assim: um médico impecavelmente vestido de um branco diáfano da ética , jamais maculada com qualquer atitude que não seja servir ao outro – também não nasceu para ser servido- , comprometido com seu trabalho médico e com seus ideais hipocráticos , jurados e impecavelmente cumpridos há compridos 35 anos.Como seu amigo e colega médico de turma daquele antes ” magricela, olhar esperto e altivo…indomável “‘ , sei que dentro dele mora um anjo de amor, ternura e dedicação ao próximo que abre suas grandes asas acolhedoras para levar o melhor de si e de seus vastos conhecimentos médicos aos que dele necessitam. Agora, dá-se um pouco de merecido descanso das lides nosocomiais que ele aceita com a serenidade do dever cumprido. Mas ainda faz da sua Urolito, clínica urológica de ótimo padrão , um templo de acolhimento e de servidão ao próximo, além de ser o seu honesto e justo ganha-pão. Afinal, quem nasce médico, morre médico.
Mas de repente, não mais que num repente, chegam os fim de semanas e lá se vai o honorável Dr Paulo Rodarte se despindo pela vida de seus afazeres médicos, pondo num cabide a engomada indumentária branca , abandonando a velha maleta de couro cheia de petrechos mil num canto qualquer, lacrando a volumosa agenda de compromissos, desligando-se de celulares e de tudo e de todos para voltar a ser o que é e sempre será : um menino simplesmente.
Como um experimentado peão que conhece bem a sua montaria , sobe célere na sua velha caminhoneta, engata e chega logo a uma quinta marcha , como que esporeia o acelerador e vai sentir o vento despentear seus ralos e aloirados cabelos até ganhar o canto de sua roça , sua rota de fuga, onde sua alma habita em todos os rincões sonhados.
Ali, atento a tudo que se lhe apresenta na vida campesina, embevecido e enamorado pela vida, vai pintando com matizes bem escolhidas uma aquarela de pensamentos que reproduzir-se-á em crônicas , pouco tempo depois , o que desfilou ante seus olhos estupefatos e atentos, coisas e fatos que se aninharam dentro dele , as prosas trocadas com os homens simples dos lugarejos – felizes em seu buraco até ” quando jogarem terra por cima” , o matuto recém-ajuntado que ” antes era eu só. Agora , é dois comigo ! ” , tudo isto que faz o doce encantar deste menino ainda não de todo envelhecido! Que surpreende tanto , daí o seu encanto!
Temos assim, privilegiadamente, em letras roseanamente cheias de neologismos e de encantos surpreendentes , a estória do pé-de-couve que cantou como canarinho belga, do seu cãozinho Willie que o abandonou e fugiu para viralatar na cidade grande, conhecemos a onírica vovó das rosas amarelas, os cãezinhos Pretinho e Toquinho trancafiados, com sentimento de autoculpa, e ” que só tinham fidelidade a oferecer …e não ingratidão “, o combate perdido para os guerreiros marimbondos, em ordem unida , nas jabuticabeiras carregadinhas e atapetadas de frutos , a maritaca que escolheu ser orquídea, , a apologia da vida ao ar livre e o correr pelas pradarias acompanhando o percurso diário do sol , entre vacas , equinos, cercados, caminhos de chão batido e ladeados de matagais , entremeados de ipês e dos trinados dos pássaros.
Paulo é um homem urbano mas com uma alma roceira , ecologicamente atenta às coisas da natureza, como apiedar-se da verde amiga que partiu – ” Que pena que a grande árvore da praça morreu! “-, dos famintos a banquetearem-se do capim viçoso que crescia num lote ermo, a sensação de um aquário vazio pela perda do companheiro aquático Zebrão, sem despedidas ou velório condizente.Apesar de aparentar nítida felicidade tem também, próprio dos poetas e estetas, um coração hipertrofiado de sensibilidades pelo amor saudosista e paternalista , o que lhe dá momentos de solidão e angústia , resultado nítido de sua idolatria pelos seus filhos queridos , pássaros viajantes em busca do infinito e da autorrealização profissional, que buscam suas próprias respostas. Em alguns de seus escritos acobertados de dor acho que a lágrima carrega-lhe a pena pois a humanidade de Paulo é muito maior que a sua compreensão do moinho cruel da vida que nos esmaga e nos reduz à miséria afetiva por querermos fazer o mundo à nossa maneira sentimental. Assim, igualmente chorei com ele ao lê-lo na crônica em que visita a casa de seus pais, onde nasceu, à Rua Coqueiral 155, em Boa Esperança , onde seu pé- de- camélias rosas não estava mais lá, tomado pelo mato cruel da saudade , assim como eles, seus pais queridos. Outro chororô com o ” Crescer dói , e como dói no coração “, bárbaro bilhete esquecido numa gaveta de escrivaninha da desbravadora filhinha ausente. Bem como outro bilhete emulador de um pai pra sua cria…desencantada com os percalços iniciais da carreira em flor da advocacia, ” não se amofine, meu filho.Um dia ,vai melhorar “. Bons pais às vezes tornam-se manteigas derretidas pelo amor aos filhos, seu bem maior.
Às vezes, Paulo Rodarte se nos mostra outras inquietações interiores , ” momentos de farol baixo ” em que busca ” a solução para encontrar de novo a alegria “,filosofando ou ensimesmando sobre temas existenciais, pra aguentar esta solidão maldita que nos joga no abismo de nós mesmos, ” a dor mais doída do mundo ” como a sincera angústia d’alma ” pois quem não tem alma não sofre…” . Como diria Fernando Pessoa: ” O poeta é um fingidor,finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que realmente sente “. Assim, incognitamente, também Paulo o é…
Explicitando Deus como não sendo ” um pássaro preso na gaiola da razão…pois amor não tem razão “, deplorando a perda de um amigo íntimo na ” dor de um abraço que foi embora…para nunca mais retornar …”, dissertando sobre o amor fundido tal uma amálgama, no dicotomismo real e virtual , na figura do único ” valente e paciente ” amor total e verdadeiro à sua esposa , sua “santinha protetora…um esteio onde amarro minha égua pampa, durante as horas de prazer quando vou à roça ” …. vivenciando juntos um ensolarado e gratificante amor familiar. Paulo é família!
Este é o Paulo Rodarte que se dá a conhecer. E que nos brinda agora com mais esta obra fecunda de lindas e memoráveis crônicas de vida interior , escrevinhadas na simplicidade de quem tem a erudição de resolver a complexidade do escrever bem e bonito, sem rebuscamentos. Garimpar palavras, burilá-las , irmaná-las e dar-lhes vida própria num estilo sucinto e esmerado que nos dá deleite e prazer de viajar e nos reconhecermos em suas estórias. Algumas cheirando a solidariedade e cumplicidade como a do menino engraxate adotado, outras maluco beleza como a do celular perdido nas parafernalhas de uma bolsa de mulher; são tantas crônicas e tão gostosas de se ler que a gente tem dó que se chegue ao ponto final.
Pois como dizia Mario Quintana, ” um bom poema é aquele que nos dá a impressão de estar lendo a gente…e não a gente a ele”..
Também, Chaplim dizia que ” cada um tem de mim exatamente o que cativou “. Paulo Rodarte nos cativa totalmente pois temos dele este transparente e cristalino lado menino, moleque , de pés descalços no chão, livre e solto como o cantar dos bem-te-vis. E isto nos basta e nos plena. Pois nos identifica . E como ele apregoa, em sua reencontrada felicidade de voltar às caminhadas pelos campos e de escrever inspirado , e bem , “‘ caminhe, homem, faça como eu faço, não o que eu digo. Graças às pernas, fiquei de bem comigo…”
E eu, como admirador e amigo confesso, arremato: ” – graças às penas, Paulo Rodarte, ficaste de bem consigo” .
Parabéns, meu amigo menino bem-te-vi ! Repetindo-me, se eu compraria um livro seu:
-Responderia mehor se dissesse a você que o seu livro já me comprou…
Ao lê-lo, como você cismei de ser FELIZ!
Nelson Antônio, 28 de fevereiro de 2010