Chega-se a um certo ponto da vida que podemos nos dar o merecido descanso.
Uns mais prematuramente já que a saúde os abandonou antes do tempo.
Outros, mais felizes, no mais tardar dos anos. A vida foi benevolente com aqueles felizardos.
Já dizia meu saudoso pai: “não se aposente nunca meu filho. O ócio é o começo do fim”.
Pretendo seguir a risca sua recomendação. Mas quem sou para vaticinar meu futuro? Se mal sei o que vai ser de mim daqui a uma hora apenas? Sei que cada vez mais pouco me conheço.
De mim tenho algumas recordações do meu passado. Aquela rua me olha com olhos rasos de saudade daquela casa que não existe mais. Onde passei parte da minha infância brincando ainda menino com amigos que hoje moram em outra morada. Mais em cima na azulice do céu.
Vivemos tempos idílicos. Quando ainda nem existiam essas máquinas modernas que nos permitem escrever com tamanha rapidez. Os teclados eram duros e não tinham a capacidade de nos corrigir quando errávamos. A velha Facit do meu pai agora descansa em paz num cenário maravilhoso. Olhando embevecida as águas plácidas de uma represa.
De vez em quando passo os olhos nela. Não digo nada. Apenas me lembro do meu pai escrevendo suas petições advocatícias. Amontoando folhas de papel no cesto naquele quartinho no andar inferior de nossa casa. E como ele escrevia bem.
Já fiz de tudo um cadinho. Já fui menino. Já fui jovem e me fiz adulto. De adulto engordei anos. Hoje me sinto realizado como um ancião que ainda pensa ser menino. Embora o espelho me diga e me contradiga dizendo: “cuidado velhinho. Não ande na rua desacompanhado. Atravesse na faixa. Espere o sinal ficar verde. Se pensas que ainda és criança diga adeus a sua infância. Ela te olha de longe. Se não enxergas procura um médico das vistas. Quem sabe precisas de óculos”?
Um dia desses escutei, sem querer, essa conversa de uma neta com seu avozinho.
Ele mal ouvia o que dizia sua netinha. Mas mantinha seus olhinhos espertos na boquinha da mocinha enquanto ela falava.
“Meu querido avô. O que o senhor tem feito? Bem sei que estás aposentado. Tens todo o tempo do mundo ao seu dispor. Não trabalhas mais? Passa o tempo todinho sem nada a fazer? Não se cansa de ficar à toa? Ficas a ver televisão? O senhor ficou viúvo há meses. Não sentes falta da minha avozinha? Ela era tão boazinha. Não tens vontade de se unir a outra pessoa? Eu vivo pelo trabalho. Não tenho tempo pra nada. Estou aqui pensando no que fazer na parte da tarde. Não me casei ainda. Espero não ficar sozinha a vida inteira. Só que ainda não encontrei meu príncipe sem ou com sorte dele ou minha. Faço contas o dia inteiro. Meu orçamento está sempre apertado. Não vivo de rendas como o senhor”.
O avozinho, tentando escutar aquela ladainha nada dizia. Só ouvia sem se manifestar.
Em certo ponto da conversa enfim disse, em poucas palavras, de fácil entendimento:
“Olha aqui minha querida. Você me perguntou o que ando fazendo. Fiz seu pai. Cuidei dele a vida inteirinha até que você apareceu. Como ele não tinha renda fui eu quem cuidei de vocês todos. Seu pai era um desempregado. Mal ganhava para comprar suas fraldas. A papinha que você, comilona, ingeria, vinha de meus ganhos. Sua saudosa mãe morreu poucos anos depois de você nascer. Era eu quem trocava suas fraldas pois seu pai, meu filho, saia em busca de emprego. E voltava a nossa casa desolado. Ele acabou numa mesa de bar sem nada ao fim de sua vida. Que durou bem pouco. Tendo falecido aos trinta anos. E fui eu quem levou seus restos mortais ao campo santo. Você nem se lembra disso não é sua esquecidinha? E quando me perguntaste o que tenho feito respondo- já fiz muito. E mereço descansar um cadinho mais”.
Parece que a sua neta entendeu o recado. Ela se despediu beijando aquela face cansada dizendo: “te amo meu avozinho querido. Como a ninguém mais”.