Prova de vida

“Agora é tarde”. Dizia ele.

Seu Antero, no alto dos seus não sei quantos anos, desfrutava da sua aposentadoria, mais que merecida, há quase uma eternidade.

Ele veio ao mundo no longínquo um mil menos mais de oitenta do ano em que estamos. Fazendo as contas perfaz quase um centenário que ele nasceu.

Ele nem se lembra mais quem foram seus pais. Meio caduco sua memória claudica como a mula manca ao tentar subir o morro barrento depois da tão esperada chuva que despencou maneira na noite de ontem.

Mas, quando a ele perguntam o que mais gosta de fazer ele logo responde com sua vozinha fanha: “que memo sabê. O que mais me apetece é trabaiá. Tanto no cabo da enxada como na enxó. Fui carpintero num tempo antes de agora. Aprendi a carpir mato sem medo de leva cascavé na canela fina. Cobra pra mim não me mete medo. Tenho medo sim de sujeito que dá calote na gente. Paga o que deve. Sinão o sino balada na missa anunciano o safadão”.

“Ai que sardade desse tempo bão”.

Continua ele.

“Minhas lembrança de quando criança não param por aí. Empinava pipa. Cabulava aula dizendo ao meu pai que tinha ido à missa. Mas de verdade era uma coleguinha mais linda que uma franguinha por empenar que me fazia sonhar com ela. Seu nome era Dorotéia. Uma formosura de menina. Clarinha como nuvem sem chuva. De pernas grosas e ancas largas como uma boa égua garupeira. Só não namoramos por conta da bronca que seu pai me deu. Por lhe ter afanado um beijinho mais doce que jabuticaba madurinha.”

E se deixasse ele encompridava a história até a manhã seguinte. Eram tantos causos que não terminavam nunquinha.

Seu Antero, meu velho amigo, era um amor de pessoa.

Era a prova inconteste, segundo sua própria definição, quando a ele perguntava qual era seu maior defeito ele logo respondia entre risos de troça: “bondade pura”.

Aos quase cem anos, vivendo como podia, sua única receita era a minguada aposentadoria de um salário mínimo. Fora algum negocinho que fazia. Catirava dentadura velha por uma quase nova. Vendia roupa velha no brechó da cumade Hilda. Na sua vendinha quase falida. À beira da estrada tinha quase de tudo um cadinho. Mas quem ali comprava era tudo na caderneta. Embora estivesse escrito em letra de forma na parede da tal lojinha: “fiado não vendo. Se quiser levar deixe uma nota promissória com o aval de um fiador. Se ele não pagar põe na conta do Abreu. Se ele não pagar muito menos eu. E num vorte mais. Nem no carnaval do ano que não vem.”

E a pessoa não voltava. Dava o cano no coitado do veio Antero.

No mês passado. Um mês ensolarado e de um quentume de assar pão de queijo na soleira da porta do lado de fora da casa.

Seu Antero recebeu uma ligação de uma casa bancária. A mesma onde recebia seus caraminguados de um salário mínimo.

Ele mal conseguia trocar dois passos. Suas pernas gastas eram o começo do fim. Seus olhos embaciados mal enxergavam letras gordas. Imaginem letrinhas miudinhas. Nem lhe passavam pelas lentes de um par de óculos herança de seu falecido progenitor.

O adorável Seu Antenor estava prestes a fazer uma visitinha sem volta ao papai do céu. E ele sonhava ali encontrar seus entes queridos e as pessoas que com ele repartiram a infância na sua rocinha que tanto amava de paixão.

Vivendo, como podia e do jeitinho que dava, com seus caraminguados um mil e quase quinhentos reais, tudo lhe faltava. A quantia mal dava para pagar os remédios. E quase nadica de nada sobrava para encher a despensa sempre vazia.

Aquela ligação inoportuna o intimava a ir ao banco fazer a prova de vida.

Senão sua aposentadoria correria o risco de não ser depositada no mês seguinte.

De fato essa prova não pode ser feita. Pois, naquela manhã calorenta encontraram o Seu Antero mortinho da silva em seu leito de morte.

Donde deixo escrito a minha opinião. Pra que mais esta amara exigência? Se muitos aposentados mal conseguem sobreviver com seus magros caraminguados? Deixem-nos viver em paz. Até que a morte nos intime a viver do outro lado da vida. Espero que do lado de lá a nossa aposentadoria nos permita viver com dignidade.  Que infelizmente não desfrutamos por aqui.

 

 

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