Puxões de orelha, castigos, lá se foram os anos que a gente recebia e não reclamava.
Ainda me lembro, tempos passarinham com asas da minha imaginação, de quando eu, menino, fazia uma artezinha, tal e qual não voltar à casa dos meus pais à hora marcada. No intuito de gazetear aula. Justamente aquela de aritmética. A de português não perdia umazinha. Já que sempre tive verdadeira adoração pelas letras. Os numerais me causavam asco. E sabia de cor e salteado soletrar o abecedário inteiro. E mal sabia usar a tabuada. Não conseguindo digerir boca abaixo quanto seria duas vezes dois se perfaziam quatro. Multiplicar então. Que doideira. Me dava dor de cabeça aquele conta que fazia de conta que não existia. Dividir então não era do meu costume. E eu me perdia como o Minoutauiro andava às cegas pelo labirinto.
Ao chegar à casa, de cara lavada, tentando iludir minha mãezinha, que foi professora antes de se casar com meu pai. Inventava uma desculpinha tosca. Não existiam ainda os Fake News (me causam ojeriza os anglicismos). E a ela respondia: “mãezinha. O meu atraso se deve a isso- fui comprar pirulito na venda do Seu Batista. Como ele não quis me vender fiado acabei pedindo emprestado ao meu colega Dinho. Como ele aceitou que eu pagasse em serviço. Tive de engraxar seu par de sapatos. Daí o meu atraso. Prometo que tudo isso é verdade”.
Não sei se ela acreditou na minha desculpinha esfarrapada. Acredito que não. Pois acabei ficando de castigo pela tarde inteira. Assentado àquele banquinho sem encosto. Impedido de assistir televisão. Ainda hoje, prestes a inaugurar idade nova. Embora não seja mais novinho. Já que em sete de dezembro que se avizinha desaniversariarei (mais um neologismo Rodarteano), mais uma vez.
Anos depois, me lembrando dos puxões de orelha dos meus pais. Agora as minhas orelhas orelhudas doem mais.
Não aprecio que me puxem os aparelhos auditivos. Sei que ainda cometo senões. Mas me apresso a corrigi-los. Embora pense que burro velho não muda a marcha. Continuo meu trote cadenciado vida afora. Até quando chegar a minha hora.
Que ela tarde enquanto durarem meus pensamentos. Que lamentem a minha partida antes que eu parta. De nada adianta derramarem lágrimas sobre o tampo do meu caixão. Ou depositarem flores sobre meu túmulo. Logo elas perderão o viço e murcharão. Se quiserem me prantear que o façam enquanto eu estiver respirando. Vivinho da silva embora meus sobres sejam Rodarte de Abreu.
Como minhas pernas me fazem falta. Tanto quanto a inspiração que me cavouca por dentro.
Tenho verdadeira ojeriza pelos autos que movimentam a economia. Se dependesse de minha pessoinha inexpressiva os postos de gasolina iriam à bancarrota.
Ando mais que noticia ruim. Dizem que me alimento de canela de cachorro andejo.
Isso nada mais é que uma verdade verdadeira. Já fui mais corrediço. Agora me contento me correr, devagar, quase parando, na esteira da academia do LTC.
Nado como pato sem asas. Não afundo como peixe que não sabe nadar.
No dia de ontem. Antes da hora do almoço. Tinha de me dirigir, sob um sol escaldante, até parte alta da cidade. A uma rua que desconhecia onde seria. Mas partindo da premissa de quem tem boca vai mais longe. Perguntando a um e ao segundo. Um dia chegaria ao meu destino final.
Até que, passando por um passeio sem muito asseio. Atrás de uma velha conhecida de tempos idos. Pitando um cigarro aceso. Ao tentar ultrapassar aquela dama bem apetrechada de traseiro. A ela dirigi um puxão de orelha desse mal jeito: “não sabe a senhora que fumar faz mal a saúde”?
Ela me olhou de banda e sorriu pra mim. Pior se ela estivesse rindo de minha pessoa. E me disse à queima cara: “hoje não somente fumo como bebo e o melhor. Dou pra quem quiser”.
Despedimo-nos com a mesma alegria de dantes. Dei-lhe um bom dia e parti ao meu ponto final.
Como repreender aquela mulher? Se eu mesmo não aprecio que me puxem as orelhas?