“Pra mim não!”

Tem gente que a tristeza não tem lugar.

Tudo pra eles se escreve alegria.

Uma simples noite de sono se traduz em felicidade. E ela, a tal felicidade, não deixa espaço para pensar sequer em dias piores. Tudo na vida se resume em dias ensolarados. Transbordantes em sol como hoje, vinte e três de outubro, amanheceu.

Pra aquelas pessoinhas felizes a felicidade se resume na singeleza do singelo. No acordar de bem com a vida. Como se ela fosse apenas recheada de flores sem espinhos. Uma vida que nada pode conturbá-la. Pois ela deve ser vivida pensando sempre em bons momentos. Aqueles que deixaram rastros de tristeza serão solenemente olvidados. Pois os tais nem merecem ser citados. Pois eles carregam em seus braços amarguras tamanhas que podem levá-los pra onde a melancolia mora.

Conquanto pra mim qualquer coisa se desmanche em lágrimas torrenciais. Pra ele, aquele senhor já alquebrado em anos, um simples espetão no dedo, ao Invés de nele provocar insatisfação, fá-lo se desdobrar em sorriso. Um sorrisão um mil e um.   Já que lhe faltam mais da metade dos dentes de cima. O que não impede de degustar torresmos duros como corações desprovidos de paixão e amor.

Seu Antenor já passou em muito dos oitenta. Pelo que ele me conta já se avizinha do quase centenário. Mas não parece.

Dada a sua face lisinha como bunda de nenê. Seus cabelos fartos e tintos de negro como asa de urubu. Não lhe dão mais de sessenta. Se tanto.

Ele sorri até da própria desgraça. Conta, rindo da sua desdita, o dia quando teve de enterrar um filho, aos vinte anos, de uma enfermidade incurável e sem possibilidade de recuperação. Ele sorria à beira do caixão.  E quando os passantes lhe perguntavam se ele estava triste ele respondia resignado: “foi Deus quem quis assim”.

Seu Antenor vive só. Num casa velha. Cujas portas nem se fecham. Numa cama cujo colchão de palha divide com os morcegos e ratazanas graúdas passa as noites num sono dos justos.

Naquela morada numa fazenda velha mora desde quando perdeu os pais.

Nunca se consorciou a uma mulher. Sabe cozinhar como poucos. Lava a própria roupa numa bica nos fundos da casa. Eletricidade não tem. Luz somente no bico de uma lamparina que quando falta querosene a escuridão impera. Uma velhusca televisão que nunca foi ligada serve de tampo de mesa onde faz refeição.

Tem por companhia apenas dois cães que não lhe deixam um minuto sequer. Tob e o velho Jack são como filhos que já não tem.

Naquela manhã chuvosa passei pela sua morada.

Seu Antenor, mãos postas no queixo, escutava um velho radinho de pilha que não funcionava. Fazia de conta que ouvia uma musiquinha imaginária que só seus ouvidos apurados conseguia escutar.

Naquela noite uma chuvarada entrou-lhe casa adentro alagando tudo ao derredor. A sua cama boiava como se fosse um barco à deriva. Seu pobre colchão de palha mais parecia um bote salva vidas. Por sorte seus amigos Jack e Tob se salvaram da enchente.

Durante nosso encontro, naquela quase noite de uma sexta-feira, tentei consolá-lo das perdas que ele teve.

“Que tragédia meu amigo! O senhor perdeu quase tudo. Qualquer se sentiria mortificado. Que tristeza deve estar passando”.

Foi essa a resposta que ele me deu. Exibindo mais um sorriso encorajador.

“Ah! Já passei por tantas coisas… Mais uma não me faz mais triste. Amanhã há de ser novo dia. A chuva passou. O sol voltou. Meus amigos Tob e Jack estão comigo. Eles são a minha família de agora. Não tenho motivos para tristeza. Pra mim azar é festa. A sorte tem me acompanhado até o momento presente. Pra mim chorar não tem razão”.

Despedi-me dele pensando na vida que tenho levado. De vez em quando a tristeza me domina. Mas como Seu Antenor diz “pra que me entristecer tanto”? Se no dia seguinte novamente brilha o sol.

Pra ele não tem tempo ruim. Por que pra mim deveria ter?

 

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