Não era bem isso que queria

Avizinha-se o dezoito de outubro. Data consagrada ao dia do médico.

Esculápio para os mais antigos.

Ser médico era o sonho do menino de nome Paulinho.

Bom aluno. Aplicado nos estudos. Nunca perdia um dia de aula desde quando foi matriculado numa escolinha pertinho da porteira da roça onde morava.

Paulinho acordava cedinho. Antes mesmo do nascer do sol.

Se chovia o costume era o mesmo. Na roça não se contam feriados ou dias santificados.

É sempre a mesma cantilena.

Ao cantar do galo ou cacarejar das galinhas todo mudo salta da cama.

E começa a faina de cada dia.

Depois de um cafezinho requentado na trempe do fogão a lenha. Mal acompanhado de uma broa de fubá azedo. Pão é iguaria que na roça não existe. O padeiro por ali não passa.

Paulinho, filho único, ajudava ao pai a ordenhar as vacas.

A mãe do menino, de nome Joana, há muito já se levantou. E já estava no curral com a ordenhadeira limpinha. Prestes a deixar entrar as vacas leiteiras apartadas dos bezerros.

Paulinho, assim que as vacas saíam do curral, ele mesmo quem cuidava de encher os cochos de silagem de milho. Com aquele cheiro característico que elas adoram comer.

E vai pra escola sempre a mesma hora. Precisamente as oito começavam as aulas.

Seu sonho de se tornar médico um dia iria se concretizar. Mais cedo ou no mais tardar aos quase trinta anos.

Mas, naquela escolinha rural era impossível continuar. Ele teria de se mudar pra cidade.

Assim o fez aos quinze anos. Deixou a rocinha que tanto amava com os olhos rasos d’água.

Como não tinha quem o sustentasse teria de trabalhar.

Conseguia conciliar os estudos com a função de entregador num supermercado.

Desdobrava-se sempre sonhando em entrar na faculdade de medicina. E nunca desistiu do seu intento.

Não teve sucesso no primeiro vestibular. Retentou o segundo. Até que na terceira tentativa foi aprovado.

Foram-se seis longos anos.

Enfim o não mais menino Paulinho se transformou no médico doutor Paulo. Era o primeiro da família a se formar num curso superior. E não se achava superior a nada.

Sempre humilde e esforçado.

Naquele ano que se vai ao longe seus pais já haviam partido ao infinito.

Não havia nenhum aparentado para acompanhar sua vitória.

Mas ainda estava longe de ver seu sonho concretizado. Faltava se especializar em alguma parte do corpo humano. Verdadeira colcha de retalhos que era formado.

Doutor Paulinho se desdobrava em plantões intermináveis. Pulava de um hospital a outro.

Mal sabia a cor de uma noite de sono.

Foi numa noite de sábado quando foi chamado às pressas para atender a um acidentado. Era um politraumatizado grave.

O pobre acabou morrendo uma hora depois. Naquela sala fria apenas doutor Paulo estava presente e nada pode fazer para impedir o óbito.

A família do morto não conteve a sua revolta. Acusaram o pobre doutor de omissão de socorro e imperícia.

Quase que aquele jovem esculápio perdeu o diploma. Foi processado à revelia.

Mesmo assim nada impedia o sonhador doutor Paulinho de continuar na lida. Mais quatro anos se passaram. Outros óbitos sucederam. Mais mortes eram atribuídas ao pobre médico em seus intermináveis plantões que varavam noites.

Mas ele perseverava. Estudava sempre pensando ser especialista em cirurgia geral.

Até que numa malfadada noite. Quando se preparava para dormir. Sem conseguir pregar os olhos.

Foi chamado ao telefone para atender uma criança recém nascida. Pediatria nunca foi de sua predileção.

E elazinha nasceu de olhos fechados que não mais se abriram.

Mais uma vez culparam o infausto acontecido ao doutor Paulinho. Mais um processo ao qual teve de responder.

Foi intimado a pagar uma quantia exorbitante aos pais da criança. E uma pena de três anos em regime aberto.

Aos quase quarenta o desalentado doutor. Sem saber qual rumo tomar. Sem sequer conseguir se especializar.

Naquela noite quente. De um verão que passou. Pensou na data que se avizinhava dezoito de outubro, dia do médico.

Desde pequeno sonhava seguir aquela nobre profissão. A medicina era tudo que queria.

Mas todo acontecido conspirava contra ele.

E o fazia pensar. Seria?

 

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