Vou vivendo de saudade

Saudade e lembrança pra mim são palavras gemelares.

Uma não vive sem a outra. Aonde uma anda a segunda caminha logo ao lado.

Uma pequena diferença existe entre as duas.

Lembranças podem ser boas ou ruins. Já a saudade, como ela pode doer em profundidade dentro da gente. Esse sentimento difícil de definir e fácil de sentir.

Quando a gente lembra de alguém, que já passou ao além, a saudade se manifesta pungentemente como se um punhal nos fosse ensartado dentro do peito. Só que essa punhalada não faz sangrar. E não se pode ver uma mancha sequer de sangue por fora. Mas no âmago nosso órgão pulsátil dói de verdade. E ele pode parar. E a razão se percebe aqui dentro. Já que somos puro sentimento. E a tal sensibilidade nos machuca intrinsecamente. Fazendo com que lágrimas escorram pelo canto dos olhos. Molhando-nos a face. Mesmo nestes dias quentes. Com o sol brilhando no firmamento. Somos todos reféns do mesmo sofrimento. Como se uma pessoa querida se despedisse de nós. Pra sempre.

Viver de saudades me faz lembrar de uma pessoinha querida. Que já partiu ao infinito há tempos idos.

Seu Joaquim, bem velhinho, ele contava com mais de oitenta quando nos vimos pela ultima vez.

Ele enviuvou já exatos seis meses. E como ele amava sua amada companheira.

Viviam um pelo outro. Até que a morte o separou para ele não definitivamente.

Naquela noite enlutada nunca vi uma despedida tão sofrida.

Seu Joaquim chorava a um canto inconsolável.

Eles não tiveram filhos. Não soube o porquê.

Passaram a vida inteira entre eles dois. Pareciam almas gemelares.

Iam a missa sempre a mesma hora. De mãos dadas como dois namoradinhos.

Pra mim um exemplo vivo a ser seguido. Se houveram rusgas entre eles desconheço.

Dormiam abraçadinhos. Acordavam sempre a mesma hora.

Dona Filó, como era conhecida a esposa amada, a seu esposo dedicava-se de corpo inteiro.

Seu Joaquim foi seu primeiro e único caso de amor verdadeiro.

Conheceram-se ainda na sala de aula. Ele com quinze e ela com menos três.

E aquela relação continuou vida afora. Até o fatídico dia do passamento da esposa amada.

Ainda me lembro da enfermidade que ceifou a vida de dona Filó. Os médicos dizem que foi Alzheimer. Ela passou seus últimos anos com os olhos perdidos em direção ao vazio do nada. Olhares inexpressivos. Poder-se-ia dizer mortos.

Mas Seu Joaquim nunca abandonou sua amada Filó aos cuidados de cuidadores. Ele mesmo lhe dava banho. Cuidava de sua alimentação criteriosamente. Até o fim de seus dias.

Naquela noite enlutada do velório. Naquela salinha apertada. Ao ver meu velho amigo recostado sobre o tampo do caixão, inconsolável. Dele me aproximei.

Acompanhei-o até o campo santo. Revezamo-nos na alça do ataúde.

Já com o cemitério vazio. Naquele final de noite. Já estava escuro.

Sentindo que Seu Joaquim voltava à casa sozinho. Fiz-me acompanhar.

Não foi preciso muito esforço para dele tirar algumas palavras. Seu olhar me dizia: “ preciso desabafar”.

“ Meu caro amigo. Entendo sua tristeza. Conhecia sua amada Filó há muitos anos. Era uma pessoa boa. Como amo meu marido. Foram palavras dela que eu repito. Foi uma perda lastimável. Mas, considerando-se seu estado talvez tenha sido a hora de ela descansar. Essa doença não tem tratamento. Sofrem todos ao seu redor”.

Já quase chegando a casa do meu amigo Joaquim, antes de abrir a porta. De sua boca escutei estas últimas palavras: “ não cabem dúvidas que pra minha amada Filó chegou a hora. Durante nossos mais de sessenta anos de convívio sempre vivemos em paz e amor. Nunca discutimos por nada. Éramos como eternos amantes apaixonados. Desse nosso primeiro beijo depois da aula no primeiro grau. Agora que ela partiu meu coração partiu em pedaços. E como dói. O que fazer agora? Nunca a esquecerei. Vou viver de saudades. Lembranças de nós dois me confortam. Até quando”?

Uma semana depois fui informado da morte do amigo Joaquim. Ele morreu durante o sono. Abraçadinho ao travesseiro da amada Filó.

 

 

 

 

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