Não sei se iria suportar

Muitas vezes pensamos que aquele peso seria demais para carregarmos às nossas costas.

E que ele fatalmente faria vergarmos sobre nós mesmos e iríamos ao chão.

A queda seria inevitável. E os danos às nossas pessoas seriam irreversíveis.

Mesmo que fossemos acostumamos a levantar o dobro de nossos pesos não sei, devido à idade em que nos encontramos, não daríamos  conta de adicionar mais algumas gramas, ou mesmo quilogramas, a nossa frágil estatura óssea e parca envergadura.

E quando chegamos a idade vetusta as enfermidades nos tomam pelas mãos. Enveredam-se pelas nossas frágeis pernas, estendendo-se pelo nosso corpo inteiro, fazendo-nos dobrar de joelhos. Até não mais suportarmos tamanhas contrariedades. E enfim sucumbiremos e seremos sepultados ou incinerados num forno crematório qualquer a mais de trezentos graus celsius.

Aquele senhor viveu intensamente até aquela idade em que o encontrei alquebrado a um leito de hospital.

Seu nome ainda é Antenor.

Quando ainda jovem foi maquinista, equilibrista até os vinte e tantos anos, fazia malabares num circo de lona furada, palhaço das perdidas desilusões, e de tudo um pouco ia atravessando idades. Sem ainda demonstrar incapacidade laboral até quando, forçosamente, se aposentou tanto das artes circenses quanto da velha maria fumaça. A qual resfolegava morro acima, atrelada de uma infinidade de vagões repletos de carvão e outras mercadorias. Uma infinidade delas.

Seu Antenor enviuvou prematuramente aos quarenta e cinco de idade. E como ele amava a sua esposa Laura. Uma linda e servil a ele, mulher.

Desde aí o sorriso que lhe encantava a face desapareceu como fumaça ao ver extinto o fogaréu.

E seu Antenor, a cada vez que a noite chegava, pedia ao seu Deus que  o levasse pra junto de sua amada, uma vez que ela estivesse, em verdade, morando no céu.

Mas aquele seu Deus o poupou de subir alguns degraus. E, no derradeiro deles afinal encontrasse sua amada Laura mais linda ainda quando com ela se casou.

E assim, vivendo e mal convivendo com suas lembranças, mesmo que fugidias, o senhor Antenor ia de mal a nada melhor.

Aos cinquenta, um ano depois de perder seu bem maior, não carece dizer que era sua amada esposa, aquele homem, cujos costados eram fortes e resistentes, bem podia suportar um peso equivalente a dois sacos de cimento, suas costas foram vergando, alquebrado que se sentia, sendo a causa maior indubitavelmente fora a perda de sua mulher.

No dia em que o coraçãozinho dela parou de tiquetaquear o dele quase parou instantaneamente.

Antenor só não subiu às alturas com ela devido ao pronto atendimento que um seu amigo médico o livrou  da morte certa massageando-lhe o peito com massagens rápidas e assoprando-lhe o ar numa respiração boca a boca insuflando-lhe os dois pulmões que voltaram a respirar em algumas frações de minutos que mais pareciam horas perdidas  naquele instante  de  puro estupor.

Naquele dia inglório, quando em visita ao hospital, não como médico em vias de descansar, ao passar por aquele leito de enfermaria, ao me deparar com aquele senhor, em sua cabeceira dizia seu nome- Antenor.

Acabei parando um minuto que seja. Um grande relógio afixado à parede caiada de branco neve mostrava a hora exata – seis de uma tarde cinzenta e fria. Do lado de fora das paredes daquele hospital a temperatura beirava os cinco graus centigrados acima do zero.

Não conhecia em profundidade quem seria o paciente semi recostado à parte superior daquele leito tosco de enfermaria. Era uma ala do nosocômio reservada aos pacientes sem plano de saúde diga-se SUS.

Pelo prontuário dele, segundo a letra quase ininteligível de seu cuidador médico, pude ler estas anotações: “paciente de nome Antenor. Aqui internado na semana passada em crise de dispneia, cianose, hipotensão cujas cifras tensionais eram quase zeradas. Ele aqui foi trazido não de ambulância e sim por uma pessoa que não se identificou se aparentada ou desconhecida. O paciente mal  respondeu às minhas indagações. A cada pergunta que eu lhe fazia ele apenas tossia. Uma tosse seca desprovida de esputo. Em alguns segundos esse paciente quase foi à óbito. Seus olhos, quase midriáticos, uma vez se fecharam e eu os abri fortemente. De repente o vi ressurgir de entre os mortos”.

Deixei o prontuário aos cuidados de uma enfermeira linda. De pele negra como essa manhã em que deixei minha cama. Abri a janela e do lado de fora só percebi o negrume da escuridão.

Antes de deixar o hospital, antes de me despedir dos demais enfermos, já na porta de saída daquela enfermaria lotada de leitos e pacientes. Uma voz saída das profundezas de uma garanta rouca, reabri meus olhos pensativos, e descobri de onde me chamavam.

Era do leito do enfermo Antenor. Cuja placa indicativa afixada por cima da cama lia-se 24.

Era mesmo ele quem me intimava a uma conversa. Pra mim um desabafo em forma de testamento final de um derradeiro suspiro.

Deveras aquele paciente estava prestes a se despedir da vida e pular a outra. Se é que ela existe.

Acheguei-me mansamente daquele senhor. Ele mal olhou-me nos olhos.

Partiu dele a iniciativa de prosear.

“Olha. Não o conheço senão de quando o senhor passa em visitas aos leitos dessa enfermaria.

Sei apenas o que dizem as enfermeiras dessa ala do hospital. Sei ainda que você, permita-me chamá-lo assim? Parece que você tem menos idade que eu. Eu me chamo Antenor. Fui casado com um anjo de bondade. Laura era uma mulher incomparável, não só pela beleza bem como pela doçura que ela sempre passou anos juntinho a mim. Agora não mais a tenho ao meu lado. Desde que ela faleceu minha vida perdeu o sentido. Agora nada mais me alegra. Não tivemos filhos. Já fiz de tudo um pouco nestes meus quase setenta anos. Se por acaso olhares meu prontuário saberás que fui palhaço, maquinista, equilibrista que fazia malabares quando voava num trapézio nas alturas.  Agora, recostado nesse leito de enfermaria, todo atravessado por sondas, minha barriga mais parece uma colcha de retalhos de tantas incisões feitas, mal posso erguer minhas trêmulas mãos devido ao Parkinson. Só me resta despedir-me deste meu viver triste. Não sei se iria suportar mais algumas horas convivendo com dores, sofrimento, desalento. Não vejo a hora de juntar-me a única pessoa que me quis bem. Meu amor, meu único. Cujo nome se escreve Laura”.

Com os olhos já se  fechando ele me pediu, uma súplica, que desligasse o oxigênio.

Só não o fiz pois ele acabou morrendo antes. Seja feliz. Onde estiver, meu paciente Antenor, não sei de que…

 

 

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