Novembro fechava os olhos num calor de frigir ovos no asfalto.
De hoje a um dia apenas dezembro tinha inicio.
Enfim mais um ano agonizava. A esperança num ano novo melhor era tudo que Chico desejava.
Afinal esse ano quase findo não foi tão bom como se esperava.
O preço do leite não acompanhou a alta dos insumos. Quando mais se previa o valor de um litro de leite em natura ele despencou na estação chuvosa.
E era o leite a única fonte de renda do velho Chico. Bento não era bem seu sobrenome. Mas pegou o epíteto justamente por ser ele uma pessoinha quase sem defeitos. “Era bom demais”. Juravam seus conhecidos. Bento por um motivo singelo. Chico tinha o costume de benzer com água benta todos que passavam por sua casinha tosca. Diziam ser ele milagreiro. E acreditavam que Chico era tão bom que quando fechasse os olhos pela última vez seria mais um santinho a enfeitar o altar da pequena capelinha onde todos oravam aos domingos e dias santos.
Naquele final de semana Chico, por ser feriado na sexta feira, decidiu dar um pulinho à cidade próxima.
A sua velhusca Variante, um carro que de tão velho deveria enfeitar um museu. Não pegou nem no tranco. Tentou empurrá-la na descida de um morro empinado, mas nada de ela funcionar.
A mula branca não se dispôs a ir tão distante. De nada adiantou intimá-la a se deixar arriar.
Ela relinchou e acabou empacando. Chico não teve outra opção a não ser ir de carona no velho caminhão leiteiro.
Chico, pacienciosamente, esperou no alto do morro. Chovia naquela tarde quase morta.
O caminhão atrasou uma hora inteira. Caia uma chuvarada de fazer enxurrada escorrer como um rio caudaloso.
Chico Bento, molhado até a cueca, foi, espremendo-se entre latões de leites sacolejantes, até uns quilômetros adiante. Mas o tal caminhão ia parando de tempos em tempos. Pegando mais leite nos retiros por onde passava.
Foi uma carona indesejada. Na cidade apeou desconjurando o transporte. E ainda teve de pagar alguns trocados pela carona que pensava ser uma cortesia do amigo da onça de tantos verões passados.
A cidade estava um furdunço. Ruas lotadas. Gente mal educada se acotovelando nas ruas. Era dia de uma tal de Black Friday; que prometia descontos até de mais de cinquenta por cento. Reduzindo preços em função de mais dinheiro entrando no mercado. Já que o décimo terceiro ia entrando devagarinho no bolso das pessoas.
Chico entrou na primeira loja em busca de uma geladeira novinha. Pagou por ela em espécie. Trazia, num embornal surrado, notas semi novas de duzentos reais. Num total de bem mais de dois mil. Ainda tinha troco. O vendedor, um espertalhão, antevendo lucro fácil, enfiou-lhe, goela abaixo, mais uma pechincha. Um radinho de pilha como falsa cortesia. Que lhe custou mais de duzentos reais.
Chico, de posse da geladeira, ainda inteira, como levá-la pra roça se nem carroça tinha?
Essa dúvida que o apoquentava dirimiu-me em mais de mil.
Depois de duas horas na chuva, naquelas ruas lotadas, enfim dos por fins Chico pensou ter conseguido um transporte para levar a geladeira na lonjura da sua rocinha.
Mais um logro que o fez desiludir-se da espécie humana.
No meio do nada apareceu um caminhãozinho manquitola que levaria sua geladeira até sua morada.
Chico Bento combinou o carreto. Nem pechinchou a soma que o dono do caminhão iria lhe cobrar.
Mas quem diz que a tal geladeira chegou inteirinha ao seu destino mais uma vez se enganou quadradamente.
Na primeira curva do caminho adeus viola feita em cacos. O caminhão tombou numa ribanceira. Chico não estava na boléia como deveria. Agarradinho na sua encomenda foi juntinho dela até lá embaixo.
Por sorte do azar fraturou só duas pernas e um braço. Logo o direito que tem maior serventia.
Chico Bento passou o final do ano inteirinho engessado na cama. Sem direito a festejar o Natal. Sem geladeira, sem eira nem ao menos beirada onde se encostar.
Foi um final de ano trágico aquele.
O velho Chico jurou que seria a primeira e última vez que iria à cidade.
Realmente foi. Em vida…
Ainda me lembro do dia em que ele foi enterrado. Foi a última vez que o acompanhei ao campo santo.