Não era essa minha vocação

A mim um dia me perguntei. Era ainda bem pequeno: “o que gostaria de ser anos a frente”?

Pensei que eu mesmo iria responder-grandão.

Só que euzinho, como me aprazem os diminutivos!

Mal cheguei, anos adiante, aos metro e setenta. Mesmo após os setenta anos. Pois, a partir de certa idade nós, ao revés de espicharmos encolhemos tal e qual uma calça recém comprada. Uma vez lavada, passa a empacar quando a vestimos e assistimos ao triste episódio- a tal calça comprida não mais servir, mesmo sabendo que nosso número era exatamente o quarenta e quatro não o dois.

Pensativo ficava eu. Após concluir o segundo degrau de meus estudos. Naquele colégio cujo dito escrito ainda o é – “a gente sai do Gammon mas ele não sai da gente”.

Ainda não sonhava empunhar o canivete de lâminas afiadas chamado de bisturi. Já que na minha família dos Rodartes não havia nenhures esculápio. Até antão.

E por que não ser  o primeiro?

E acabei sendo eu. Não somente o primeiro neto e anos após veio ao mundo meu neto número um Theo. Ao que tudo indica meus netos pararam no Dom intercalando-se o lindo Gael no meio.

Satisfeito, e muito, com a carreira que elegi. Já no segundo ano da faculdade de medicina. Mais uma indefinição me fez pensar. Qual especialidade trilhar?

Uma vez dormindo naquele enorme edifício da rua da Bahia, na capital das Minas Gerais, uma dor angustiante me acordou no meio da escuridão reinante.

Era uma  pedrinha que tentava e retentava descer por aquele canalzinho fininho desde a saída do rim até a bexiga. E tal pedrinha sonhava não em ser urologista e sim ver a luz do sol pela saída da uretra. E foi aquele cálculo renal que despertou dentro do meu eu ser médico cuidador das próstatas crescidas, dos cálculos renais, das patologias do aparelho genital masculino, das inadequações sexuais e doutras mais.

Era exatamente essa a minha vocação. Ser doutor da medicina. Embora não tenha a titulação de doutor. Pois não fiz o mestrado nem ao menos doutorado. No entanto dos entre tantos pessoas, quando me veem pelas ruas me chamam de doutor Paulo. Já eu olho de banda e não vejo outra pessoa que não eu. Um médico metido não numa indumentária branca. E sim vestindo um agasalho para me resguardar do frio que ameaça chegar de mansinho. E nos pés um par de tênis de bom pedigree.

Mas, meu sonho divagava mais distante.

Já no começo da lida médica pensei em comprar um pedaço de chão. Onde pudesse ouvir o mugido de vacas e sentir o cheiro adocicado de esterco de curral. E ainda por riba assistir, montado num mourão de cerca a canarinhos da terra ciscando a mesma terra misturada ao esterco a cata de minhoquinhas e insetinhos para matar a fome.

E acabei passando anos, anos e desenganos, pensando, equivocadamente, errando mais que acertando, o porquê de tantos porqueres: por que o leite tem a cor branca mesmo saindo das tetas de vacas pretas? Vaca de três tetas dá a mesma quantidade de suas congêneres dotadas de quatro? Qual o tempo de gestação de éguas? Aquele pássaro de bico longo. Que tem o mesmo nome de um  partido político. Deveras o tucano é tido como um predador alado?

Respostas a estas inquisições deixo a vocês, meus leitores. E não vou recorrer ao pai dos idiotas que votaram no sapo barbudo.

Em anos dantes, quando ainda tirava leite. Foram mais de trintanos nessa atividade que requer além de enorme sacrifício uma dose imensa de amor às ruminantes. Já que acho a lida num retiro verdadeira escravidão.

Na minha amada rocinha existia uma carroça. Ela era puxada por um cavalo eunuco batizado por mim de Marreta. E como meu retireiro bonezudo Dé amava o tal Marreta. A falta de sua esposa. Melhor dizendo juntada. A de nome Ju. As más línguas me diziam: “olha. O Dé, nas horas de ócio, leva o Marreta para um matinho ensombrado, e faz amor com ele”.

Não sei se esse fato é verdade ou falácias falaciosas.

Não perguntei ao meu amigo bonezudo e não irei a ele indagar.

Mas essa charrete, ou carroça, ainda hoje mora lá embaixo na minha casa beira represa do Funil.

Marreta não sei qual é seu destino. Já o Dé agora mora em Nepré na zona rural.  E nunca mais nele passarinhei meus olhos.

Essa carroça agora a vejo feliz da vida. Antes ela quase foi levada como lenha nalguma fogueira de festa de São João.

Não pensem que seja mais uma invencionice minha. De fato conversei, sábado pregresso, com a minha carroça abandonada quase sendo levada pelas águas da represa antes citada.

Foi ela quem se abriu comigo dizendo assim: “oia meu amigo doutor. Eu e o Marreta nunca nos demos bem. Eu ficava mudinha quando ele subia o morro topetudo para levar latões de leite a entornar no caminhão leiteiro. E eu ia sem falar ou contrariá-lo pois ele podia me escoicear. Uma vez ele deu um chute com a pata de trás na minha boleia que a fez virar cacos. E quase deixei-o a ver poeira em alto mar. Ouça os meus queixumes meu bom senhor. Eu nunca quis ser carroça ou charrete. Desde quando saí, novinha da carpintaria onde nasci, olhando admirada um jardim florido, manifestei meu desejo de ser flor. Ou mesmo um canteiro cheinho de petúnias, azaleias,  margaridinhas em cores distintas. Mas acabei meus dias aqui. Admirando a lindeza desta represa. Por favor, lhe suplico. Não me faça de lenha para acender no seu fogão a lenha. E nem leve minhas rodas para servirem de estepe para ser usado, uma vez furado outro pneu qualquer. A minha vocação era ser um canteiro de flores múltiplas. Por amor de sua mãe. Faça-me esse imenso favor”.

No dia seguinte, um domingo domingueiro, dei ordens expressas ao meu caseiro amigo Tom Zé que pintasse de verde maritaca a tal carroça. Remendasse suas tábuas apodrecidas. E que forrasse o fundo dela com sacos de ração dos meus cães. Enchesse de terra adubada até as réguas de cima. E, quando tudo isso estivesse prontinho que plantasse, dentro de minha carroça todas as mudas de flores que minha esposa Rosa aí deixou na semana passada.

Tomara minha sofrida carroça fique feliz com minha iniciativa. Espero ter saciado a sua fome de mudar de vida. Ela me disse não apreciar ser simplesmente carroça. Sua vocação não era essa. E sim um lindo canteiro de flores. Em todas os seus matizes de cores. Enfim…

 

 

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