Caso tivesse de escolher um dia para morrer, por certo não seria um dia como o de hoje.
Chovera a noite passada. Uma chuva não desesperada, não mansa ao exagero, não estrepitosa sem esmero. Mas, tão logo deixei a cama, antes das seis da manhã, ao olhar pelas janelas de duas bandeiras que mostram a seringueira ainda acordando, pássaros nela pousando, e observei o chão asfaltento molhado, o céu ainda cinzento; e, o que me fez compreender que aquele dia não seria o ideal para morrer foi uma densa cerração que tapava a boca do sol, encobria parcialmente a alegria da relva molhada, verdinha como asas de maritaca, a umidade do ar ideal para a respiração, tudo, tudo mesmo, fazendo antever que aquele dia, vinte e cinco de janeiro, prestes a dar começo a fevereiro, a três dias do aniversário do meu consórcio matrimonial com a mulher ideal, escolhida a dedo, junto a ele ia o coração.
Desci a rua sob o manto denso da neblina branquinha como algodão. As Murtas que enfeitam as ruas do condomínio onde moro lançavam florzinhas brancas sobre mim. Muitas já estavam debruçadas ao piso asfáltico, mortas, sem possibilidade de contrariar a lei da gravidade, e voltar a viver no âmago verde da Murta mãe. Que vontade de assoprar-lhes o rosto despetalado, e assim restituir-lhes a mocidade, como se fosse viável devolver a mim mesmo a minha perdida há anos atrás.
Uma vez de nariz empoado na rua, ao passar pela pracinha enjeitada, carecendo cuidados de jardinagem, a grama estava alta, cheiinha de pragas, as árvores que ali cresceram não mostravam, a exemplo da seringueira desterrada, sinais de felicidade.
Mais embaixo a mesma névoa densa perdia um cadinho a obscuridade. O sol parecia dar o ar de sua graça. Diz um ditado: “dia que começa sob cerração, mais tarde o sol racha”.
O que vocês acham?
Agora, já no meu consultório, olhando pela janela do sétimo andar, ainda vazio, sem os colegas de farda presentes, a neblina ainda se mostra. Mal dá para se ver a serra da Bocaina. Apenas um edifício, que quase me empana a visão, na sua oitava laje, faltam apenas duas a ser completo, pode ser visto bem de perto.
Agora são sete e quinze minutos. Só começo a atender a partir das oito. Tomara que o tempo permita terminar este escrito.
Ainda sobre a cerração, quero deixar aqui grafados meus sentimentos que transbordam-me do peito carregado de nostalgia, de saudade de muitos seres queridos, amigos ou parentes, que me espreitam com olhos gulosos do outro lado da vida.
Sob a densa cerração de uma saudade, imensa, quero aqui relatar a vontade exacerbada de de novo ver meus pais. Sei que, talvez, de onde eles estão, a sua casa ainda me olha, naquela rua de tantas lembranças eternas, com olhos recheados de saudades minhas. Não consigo imaginar onde estarão meus pais. Seria do alto do prédio que fica bem perto da minha janela? Ou seria mais além, do manto denso da névoa fina que pouco a pouco vai embora? Ou seria ainda mais distante, da azulice do céu que em breve vai se descortinar frente à cortina do cristalino dos meus olhos? Confesso total ignorância frente a estes assuntos. Sou descrente demais dos ensinamentos deixados na terra contados pelo livro santo, que se chama Bíblia.
Ainda sob a cerração de uma saudade, nesta linda manhã de verão, dia que começou fresco, por certo não seria o dia ideal para morrer, as saudades continuam a me cavoucar o peito, com a força de um tufão, não a de uma chuvinha criadeira que caiu na noite de ontem.
Toda a saudade que me corrói por dentro tem múltiplas exibições.
Saudade das primeiras letras que aprendi, naquele colégio que ainda veste verde e branco. Daquelas alamedas ricas em árvores de rica copa, elas ainda estão lá? Algumas já perderam a vida, viraram lenha, tombadas por um machado, indo parar nalguma fogueira de São João.
Sob o manto denso da cerração de uma saudade, deixo aqui, registrado, em letras borradas pelas lágrimas que me desceram pela face, a falta que sinto da minha tenra idade. Daquelas brincadeirinhas de criança, do jogo de finca, de bete, daquela bicicletinha de rodinhas, as quais retirei do veículo de duas rodas, não o prazer que senti ao me equilibrar, tendo meu pai como instrutor, de andar sozinho pelas ruas de paralelepípedo da Costa Pereira, agora de sapato novo.
Sob o mesmo manto da densa cerração de uma saudade, quero deixar meu testemunho, de próprio punho, do quanto amava minhas lembranças, da juventude que ficou no meio do caminho, desde os vinte anos à idade do adulto que montou em mim, do mais que adulto, do velho que ainda não me sinto.
Ainda sob a densa cerração de uma saudade imensa, registro aqui, neste computador cansado, eu não estou, uma saudade leviana das mocinhas casadoiras, que exibiam, depois da missa das dez, no rela do jardim, as suas pernocas grossas, sem varizes, aos meus olhos de criança que ameaçava deixar de sê-lo.
Sob a densa cerração de uma saudade, agora, quase oito horas da manhã, faltam apenas cinco minutos para me transformar em médico, tomara dê tempo de findar essa crônica, tomara ela não se alongue muito, logo a cerração se dissipa, em seu lugar entra o sol, afinal, para terminar, fica aqui, nestas linhas poucas, a saudade que nutro por tantos e tantos amigos que partiram rumo à azulice do céu, logo vai ficar azul, a névoa branca se dispersará, mas, com certeza jamais vai se dispersar a cerração branca que emerge de minha alma impura, quando falo das minhas lembranças, dos tempos de criança, que não voltam mais.