Aquelas escadas por onde subia

Ainda me lembro, como se fosse agora.

Era jovem, recém egresso da especialidade, em terras de Espanha, precisamente de Madrid.

Vinha com um desejo enorme de pôr mãos a obra no que aprendi.

Não foram o suficiente aqueles anos quando, na capital do meu estado, a linda Belo Horizonte que cada vez mais perde o charme, dado aos ares de cidade de porte mediano que ela perdeu, agora quase uma megalópole, de trânsito complicado, pessoas aos montes andam por suas ruas, avenidas anchas demasiadamente, furtos, assaltos, antes não era assim, quando me graduei em medicina, naquele longínquo 1974, agora completo mais de quarenta e dois anos de formado, completamente forjado pelos anos todos de prática contínua de urologia, ainda longe da aposentadoria, espero continuar meu périplo médico até o final dos meus dias, que eles tardem a chegar, a especialização em rim e vias urinárias e órgãos afins precisava espichar mais.

Assim aconteceu.

Em um mil novecentos e setenta e seis parti rumo à Espanha. Pousei em Madri em meados de setembro. Dei de cara com minha casa de portas fechadas. A Casa do Brasil só reabriria as portas dali a uma semana. Já era começo de inverno no hemisfério norte. A temperatura não fazia enregelar, mas era fria o bastante para vestir capotes, cachecóis de lã, calças pesadas, em tons cinzentos.

Alojei-me num hotelzinho modesto perto da Gran Via, como era conhecida a Avenida José Antônio, uma artéria que pulsa no centro de Madrid.

Imprecisamente ao meio do mês de setembro enfim me senti mais brasileiro. Adequei-me ao idioma castelhano sem me esquecer do português. Por sorte as acomodações oferecidas pela casa que hospeda gente do mundo inteiro, estudantes em cursos de pós-graduação, geralmente jovens, ali residiam pelo período combinado. No meu caso a estada seria de um ano ou mais, se decidisse ali permanecer por mais tempo, o que é o tempo para um jovem esculápio que não deixou o coração em terras brasileiras, quem sabe seria uma espanhola morena, de cabelos longos e escuros, a futura dona da sua paixão? Isso não aconteceu, pois aqui, em minha Lavras querida, uma linda moçoila morena, de estatura mediana e imensa altura moral, linda mocinha dois anos menos que os meus, me esperava ansiosa para junto a mim formar esta família linda que Deus nos deu.

Um ano passei em Madrid. Nas férias de dezembro pus os olhos em meio mundo. Fui da África à elegante e sóbria Gran Bretanha, conheci a beleza da Ásia, passando por Istambul. Dei de olhos no meio do continente europeu. Encantei-me com Portugal, apenas estacionei em Lisboa e arrabaldes. Em Paris me senti “très important”, devido ao meu Francês incipiente.

De volta a minha pátria querida, pintada em verde e amarelo, sem passar um dia sequer em Belo Horizonte, depois de doze dias de linda viagem de navio, desde Barcelona ao Rio de Janeiro, numa cabine de terceira classe, era o que a minha minguada mesada dava para pagar, de novo em minha cidade vim matar um cadinho a saudade do lado de cá do oceano Atlântico, ávido por pôr em prática o que reaprendi.

A antiga Santa e boa Casa já esperava impaciente o jovem doutor especialista, pioneiro por aqui, introdutor de tantas novidades no tratamento da doença prostática sem incisões enormes abaixo da cicatriz umbilical, operando a glândula hipertrofiada pelo pertuito uretral, cirurgia conhecida por Ressecção Endoscópica da Próstata, não mais novidade no velho continente, como acontecia nas pequenas comunidades d’além mar.

Com que prazer e afoiteza subia e descia aquelas escadas, era apenas cinco andares, que levavam ao centro cirúrgico que antes sofria com as goteiras em tempos de chuvas de verão!

Hoje aquelas salas de operação estão de caras novas, lindas e confortáveis, lotadas de médicos operadores que impacientemente aguardam sua vez de entrar em campo, como jogadores de futebol entram nas bolas divididas, como o touro Miura investe na capa vermelha do toureiro valente.

Passei mais de vinte anos fazendo tudo isso. Lidava nos três hospitais, a seguir os nomeio: Santa Casa, Vaz Monteiro e Lúcia Pinheiro, que saudade do Pedro Zica, um médico verdadeiro, mestre na arte do bisturi, que veio a se despedir da gente depois de um acidente fatídico.

Hoje, aos sessenta e sete anos completos no fim do ano passado, ainda urologista praticante, que recebeu o dom de escrever há pouco mais de quinze anos, seriam mais?, não sei contar, dou-me o direito de fazer apenas o que minha vontade dita. Penso ter o direito de ousar.

De quando em vez passo, em idas rápidas, pela minha querida Santa e Boa Causa.

Foi isso que sucedeu no dia de hoje, vinte e três de janeiro, dia quente, de céu azul, sem sombra de chuva no ar.

Entrei pela portaria do pronto atendimento. Uma das recepcionistas me cumprimentou com um sorriso franco de boas vindas, só não disse que tinha saudade minha, como eu sentia no peito uma profunda saudade da Santa Casa.

Subi pelas mesmas escadas sem esperar o elevador. Tinha pressa de chegar à farmácia, para pedir, por empréstimo, dois frasquinhos de anestésicos, para fazer uma pequena intervenção cirúrgica no meu consultório médico.

A mocinha simpática, responsável pelos medicamentos do hospital me atendeu com a cordialidade costumeira. Com um largo sorriso na face jovem.

Li para ela uma crônica do meu novo livro, chamada de Encantos e Desencantos.

Ela mal respirou durante a leitura. E me fez sabedor das minhas qualidades como narrador leitor.

Desci pelas mesmas escadas de volta a onde estou.

Foram por estas mesmas escadas, quando, há tantos e tantos anos atrás por ali subia ou descia, arfando de cansaço, ponto a enfrentar mais uma cirurgia, ou retornando de mais uma, preocupado com o resultado da intervenção, se malograda ou não, mas certo de que as mesmas escadas continuarão sua tarefa prazerosa, não íngreme ao exagero, de levar tantas e tantas gerações de colegas, que, como eu, por ali subirão, ou irão em sentido contrário, na sua nobre missão de tirar a dor, em busca da saúde, bem tão ou mais precioso que um diamante lapidado, do mesmo quilate do amor.

 

 

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