O esperto Expeditinho

Não sei por obra de quem, baseado em que, meus pais acharam bonito colocar o Expedito como meu segundo nome. Talvez tenha sido, nunca tive a curiosidade de perguntar quando eles aqui moravam, hoje os dois moram no céu, se foi por inspiração do tal santo do mesmo nome, o santo das causas justas e urgentes, que tem nessa oração linda seu momento maior:

“Meu Santo Expedito das causas justas e urgentes. Socorrei-me nesta hora de aflição e desespero. Intercedei por mim junto ao Nosso Senhor Jesus Cristo. Vós que sois o Santo Guerreiro. Vós que sois o santo dos aflitos. Vós que sois o santo dos desesperados. Vós que sois o santo das causas urgentes. Protegei-me, ajudai-me, dai-me força, coragem e serenidade. Atendei ao meu pedido (quero continuar médico e escritor, se não para sempre, pelo menos até quando sua santidade me proteger). Ajudai-me a superar a estas horas difíceis, protegei-me de todos que queiram me prejudicar. Protegei a minha família. Atendei ao meu pedido com urgência. Devolvei a paz e a tranquilidade. Serei grato pelo resto da minha vida e levarei o seu nome a todos que tenham fé”.

Foi quando nasceu, não este Expedito, Paulo Rodarte de Abreu, urologista e escritor, um outro simplesmente Expedito, como era pequetito alcunharam-no de Expeditinho.

O lindo bebê nasceu um tanto sem cor. Veio de parto prematuro. Nascido numa casinha tosca, quase uma manjedoura como nasceu Jesus.

Chorou apenas um tiquinho. Um choro mansinho, quase um murmúrio de dor.

Também, naquelas condições de desnutrição evidente, quase um Kwashiokor-uma enfermidade advinda de falta de proteínas e calorias na criança recém nascida, o que se poderia esperar de tal menino judiado pela madrasta vida que o recebeu sem querer?

Expedito nasceu sem pai conhecido. A mãe, que quase o vomitou numa lata de lixo, assim que percebeu a cria sendo eliminada entre as pernas, sem quase esforço algum, maldisse a hora em que tinha se deitado com um qualquer, num momento em que a droga fazia dela uma mulher de menor valia. Coisa que em verdade o era. Uma rapariga de pior fama, uma meretriz, uma mulher que se perdeu ainda nas primeiras regras, a exemplo de sua mãe, trazendo nos genes ruins a saga da família toda. Putas de carteira não assinada.

Mesmo contrariando a desdita de assim ter vindo ao mundo, pela porta dos fundos, Expedito se fez gente grande. Quando alguém o inquiria sobre o que ele gostaria de ser, anos depois de deixar a criança dentro dele sumir no tempo futuro, o meninozinho esperto assim respondia: “Desejo ser professor”.

Contrariando a sina dos coleguinhas que tomavam banho na fonte luminosa da praça central, a cada semana santa, por isso cheiravam mal, Expedito não se enveredou pelo caminho torto. Não se fez drogado, não cheirou cola de sapateiro, nem ao menos fez parte do tráfico, foi aviãozinho.

À duras pelejas conseguiu, por ele próprio, matricular-se numa escola pública, de bom conceito.

Graduou-se com louvor.

No seu boletim, papelucho que não tinha a quem exibir, apenas somavam-se notas altas, fazia parte do quadro de honra, do primeiro ao segundo grau.

Foi quando mais um percalço grande desenhou-se-lhe nas sobrancelhas grossas uma expressão de preocupação manifesta. Não tinha recursos para continuar os estudos, sem família, a mãe desapareceu na braquiária tão logo o teve nos seios. Isso nunca aconteceu.

O que fazer? Como sobreviver naquela selva de pedra e cascalho duro, aos trancos e solavancos, sem fazer parte de uma estatística cruel, da base da pirâmide que mostra o incrível fosso social em que vivemos nós, os brasileiros?

Expeditinho quase perdeu a fleuma, e foi pelo caminho das pedras. Pedregulhos que recebem o nome de crack, um vício terrível, que joga seus usuários na lama mais profunda que areia movediça. De onde fica quase impossível deixar o pescoço à mostra, sufoca qual o abraço de tamanduá bandeira irritado por não encontrar formigas para o almoço.

Foi quando a sorte parecia mostrar os dentes para o nosso amiguinho que uma coisa pior ainda sucedeu.

O jovem, aos quinze anos, completos naquele dois mil e dezessete, foi atropelado por um caminhão desgovernado. Em alta velocidade que nem o socorreu.

Foi internado, mantido vivo, graças ao pronto atendimento do Samu.

Recebeu alta do hospital, onde pacientes amontoados em macas cambetas nos corredores infectos aguardavam, desesperançosos, a operação que nunca era marcada. Sempre adiada, por falta de material cirúrgico.

Uma vez na rua da amargura, amargurado, Expeditinho saiu em busca de trabalho.

Gente de maior gabarito idem gastava solas e solas de tênis na mesma empreitada. E nada.

Foi quando Expedito, no grito, passou por uma escola novinha, construída perto da praia, onde as ondas se debruçavam em marolas mansas, deixando a areia da praia polvilhada de conchinhas brancas.

Ali fincou os pés. Falou com o diretor, foi até o governador.

Depois de alguns nãos, acabou recebendo um sim.

Foi ser professor de português, sem ao menos ser licenciado em letras, mas, como escrevia com proficiência, coisa rara no Brasil, logo galgou novos postos.

Acabou diretor da instituição. Fez uma gestão brilhante.

Mas não parou por aí. De diretor de uma escola pública, de periferia, graças a sua competência provada por a+b, passou à secretário de saúde estadual, de aí a ministro da educação nacional, onde fez outra carreira maravilhosamente linda, tornando-se, após anos e anos de trabalho fecundo, um sujeito qualquer. Casou-se com uma linda mulher, de passado negro como o da mãe, prostituta rameira, que lhe deu de presente dois filhos que se tornaram meninos de rua. Mas, como não seguiram o exemplo digno do pai, foram pelo caminho errado, tornaram-se marginais de pior espécie, presos num presídio de insegurança máxima, sendo fuzilados durante uma rebelião, acontecida na semana passada.

O esperto Expeditinho morreu solitário, numa maca de hospital, no mesmo nosocômio onde foi atendido no dia quando foi atropelado por um caminhão desgovernado.

Ontem fui visitá-lo no cemitério onde Expedito foi sepultado.

Em sua lápide estava escrito, no mármore quente : “Aqui jaz mais um capítulo infeliz, de tantos e tantos homens de bem, que trilharam o caminho do bem. Mas, a sorte a eles mostrou que nem sempre o bem termina bem”.

 

 

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