A “Veinha” que acabou virando estrela

Em criança, ao caçar vagalumes na roça de umas tias avós, saindo noite alta com um puçá de pegar borboletas vivas, e depois de mortas em uma infusão de álcool com clorofórmio, espetá-las com alfinetes para emoldurá-las em um quadro de isopor, logo me esquecia do crime horrendo de matar as lindas borboletas, se bem que elas viviam pouco tempo, depois de oscular flores de algum jardim, ao aprisionar os pobres pirilampos desavisados no meu enorme puçá numa caixinha de fósforo Fiat Lux, levava os presidiários inocentes até a varanda da sua casa, casinha onde nunca mais assentei o juízo perdido, abria a caixinha de fósforos, vazia, e soltava os vagalumes um a um. Eles alçavam vôo rumo a escuridão de onde vieram. Desapareciam num átimo. Ainda me lembro de um enorme vagalume, que, ao ser liberto da caixinha de fósforo, olhou-me de soslaio e piscou sua luzinha de alguns volts fraquinhos de energia, bateu as asinhas negras, de novo pousou em minha mãozinha de menino travesso (embora não mais menino ainda faço minhas peraltices), naqueles saudosos anos quando ainda não sabia quem eu era, apesar de ainda não conhecer minha verdadeira identidade, quantos Paulos se escondem dentro de mim?, e vi, juro ser verdade, o tal pirilampo posto em liberdade, uma vez desaprisionado, passou a morar no céu, estático no firmamento, sendo mais uma estrelinha fincada em minha mente imaginosa e pura. Que, quando perco o sono, em noites negras como o passado de certas pessoas, olho em direção ao céu, e vejo, entre estrelas de verdade, astros nos quais poetas sonhadores, como eu, pisam neles com seus pés descalços, sentindo-lhes a tepidez de suas carinhas delicadas. Entre eles mora e vive irradiando não apenas luz, bem como alegria e felicidade pura, aquele vagaluminho que se tornou meu amigo.

Deixando as estrelas e os vagalumes pelos ares, vamos à idosa que hoje buliu comigo, ao descer a rua, rumo ao trabalho que versa em Urologia e em digitar as teclas negras do meu computador, deixando na tela letras unidas em palavras, muitas sem sentido, invencionices nascidas em minha mente fértil, como a terra de Boa Esperança que me viu nascer.

Ela, aquela senhorinha magricela, cabelos lisos e brancos como algodão, espevitada e andeja, não sei quantos anos dar a ela, muitas vezes, em tempos recentes, passa perto de mim, ou esmolando migalhas, ou fazendo traquinagens,como usava eu em tempos pretéritos.

Hoje dei com ela perto de uma casa onde se vendem quitutes e outros afins.

Já ali tomei meu frugal desjejum. Agora, de cafeteira comprada em terras lusitanas, quando de uma recente viagem, parei de tomar café em padarias antes visitadas.

A senhorinha agitadíssima, decerto sofrendo das faculdades mentais, tendo a sua espera alguma família assaz preocupada com seu destino, embora saiba que aquela avozinha anda pelas ruas diuturnamente, durante as minhas idas e vindas ao trabalho, subindo ou descendo passeios, ocos ou movimentados, não fala coisa com coisa.

Transeuntes bem a conhecem. Mas creio que poucos sabem de onde ela vem. Se mora com alguém, caso ela tenha netos, quantos serão, se filhas ou filhos existem, ela mora com algum deles? Ou vive solitária na rua mesmo, abrigando-se do mal tempo debaixo de alguma marquise caridosa, dormindo ou fingindo dormir sobre um colchão de papelão, se alimentando, a exemplo dos cães vadios, dos restos das sobras oriundos de sacos de lixo furados, espalhados pelas ruas ou passeios lotados, ou se a mesma velhinha, aquela que hoje percebi, na mesma agitação conturbada, nas barbas da academia de nome Exercitty. Desconheço-lhe as origens. E mais, não sei nada sobre seu passado, como adoro recordar o meu.

Voltando aos vagalumes aprisionadas nas noites escuras da roça, quando menino jovenzinho, quando vejo a velhinha, ou veinha, mais bonito dizer assim, abreviado, como não deve ser a vida, sobremodo quando sentida em saúde plena, não inerme num leito de hospital, naquela hiperatividade agitada, ao ver a agitação dos pirilampos uma vez reféns de uma caixinha de fósforo, sem poderem voar e enriquecer o céu com suas luzinhas piscantes, confesso.

Apreciaria, e muito, uma vez sabedor que o caso da veinha destrambelhada, mais um exemplo típico de esquizofrenia incurável, resistente ao tratamento, sem possibilidade de cura, agora as casas de internação de pacientes de mentes enfermas, que não podem viver socialmente, pena, estão de portões fechados, o SUS não paga a conta das internações psiquiátricas, considerando-se o problema insolúvel da pobre veinha, o sofrimento que ela se encontra, agitando as mãos, pedindo moedas aos passantes, como aconteceu hoje cedo, não tinha uma moedinha a ela dar, caso a tivesse fa-lo-ia de bom grado, lembrando-me, mais uma vez, dos vagalumes que vagueiam pelas noites escuras, piscando suas luzinhas mais e mais fracas, intimidados pela luz elétrica que hoje abunda nos meios rurais, como apreciaria que a tal velinha se tornasse uma estrela vagalúmica, que não apenas pisca na via láctea, emitindo uma luz estática, não peremptória, que se desliga e de novo acende, como acontece às estrelas pequenas, planetas de luz própria, que os poetas pensam ser vagalumes, ou uma mulher amada que acabou morta numa noite escura, e continua a emitir seu brilho com saudade da vida terrena.

A doce e desatinada veinha na qual dei de olhos nesta manhã bem cedo, quando a vi, na noite escura, acabou se trasladando em pleno ar, foi-se embora, para nunca mais voltar.

Agora, quando olho pro alto, e viajo, na escuridão da noite, para além da terra, do lindo planeta que cuida da gente, e nós não retribuímos à altura, percebo, penso que vejo, talvez imagine, uma estrelinha cadente, ou seria um pirilampo que se cansou de ir e vir, ficou preso à negritude da noite, e terminou com o sofrimento da insana pobre veinha que acabou virando estrela…

 

Deixe uma resposta