Sonhos mirabolantes do Zezinho Pequenas Causas

Ah! Se pudesse deixar em paz meus pensamentos.

Não lhes cortaria as asas. Abriria a janela dos meus olhos e os deixaria voar. E nem lhes perguntaria o destino. Seriam eles livres como um pássaro sem me preocupar em que galho de árvore iriam pousar.

Vocação. Palavra de poucas letras que se assemelha à ambição. Sentimento que nos inunda o peito quando nos sentimos incertos por qual caminho devemos seguir.

De repente nos vemos numa encruzilhada. Por qual caminho ir? Se nem sabemos onde estamos.

Ainda incertos nos deparamos com o futuro. O presente nos acena de mãos estendidas. O passado bem conhecemos. Afinal viemos de lá. Nascemos, esticamos um bocadinho. E agora jovenzinho? Que rumo iremos dar a nossa vida? Ela tem cores díspares. Num instante ela se colore em amarelo da corzinha exata de um canário já emplumado. De outras vezes ela se veste em cinza plúmbeo. Em cores fugidias como os olhos azuis de nossa mãe.

Chega um dia. Despertamos em certa hora. Alguns mais prematuramente e outros no mais tardar das horas. Que temos de escolher qual profissão abraçar.

Ciências humanas despertam em nós o melhor dos sentimentos. São aqueles nascidos para cuidar de símiles. Já outros optam pelas exatas. Números são de suas predileções. Projetos, esboçar plantas fazem parte dos seus metieres.  São os engenheiros, arquitetos que constroem casas, edifícios onde mora gente sedenta para se abrigar das intempéries. Nada como ter nossa morada própria desfazendo-nos dos aluguéis. Já os profissionais das leis usam as palavras, escritas ou faladas, para defender seus clientes. Sejam eles culpados ou inocentes até que se prove o contrário.

Todos eles não existiriam não fosse a de mais valia das profissões. Ai que saudades eu sinto da dona Beliza. Da sua filha amada dona Biló. Que nos dias de agora ensinam os anjinhos a soletrar o baba. Da não menos querida dona Vandinha. Nobilíssima mestra ainda em atividade no colégio onde estudei. Não deixo de nomear outros mestres que passearam por minha existência. Foram tantos que se os deixo de lado temo cometer uma leviandade.

Há o garoto, por mim apelidado Zezinho Pequenas Causas.  Era pequeno no tamanho e imenso nas ideias.

Ele vivia numa rocinha erma. Ao lado dos pais pequenos sitiantes.

Viviam e conviviam em perfeita harmonia até aquele dia funesto do passamento do pai amado. Ele, um homem bom, acostumado às agruras da vida, foi encontrado morto no próprio leito. Decerto foi um infarto que lhe cerrou os olhos.

Daquela família unida só restou a mãe e o filho Zezinho Pequenas Causas.

Zezinho ainda era bem novinho quando o incidente trágico se deu.

Ele contava com apenas dez aninhos. Na face lisinha apareceram as primeiras espinhas.

Mas nem tempo de expremê-las ele tinha. As tarefas na roça eram tantas que não lhe sobrava tempo nem para cuidar delezinho mesmo.

Antes das cinco da madrugada ele se punha de pé. A mãe cuidadosa já havia preparado o desjejum matinal. Um queijo fresquinho dessorava recém saído da forma. Um bule de café feito na hora não se deixava esfriar na trempe fumegante do fogão a lenha.

Zezinho, já de cara lavada na água fria tentava afugentar o sono. Durante a noite curtinha sonhava e ressonava de olhinhos bem abertos.

Era outubro em sua mais da metade. Avizinhava-se o dia dezoito. Muitos ainda não sabem que nessa data, antes mais festiva, celebra-se o dia do médico.  Já hoje sem motivos para comemorações.

Zezinho, dias depois da morte do pai. Assistiu a uma cena que o fez depestar para o futuro.

Ele se fazia distante. Mas um dia iria chegar.

A escolha da profissão um dia iria ter de decidir. Ciências humanas despertavam nelezihho o melhor dos sentimentos. Não nutria pelos números algo parecido. Era bom nos cuidados com as pessoas que dele precisavam.

Naquela madrugada quente, durante a noite, escutou um mugido de dor do lado de fora do curral.

Era a vaca Braúna tentando expelir a cria. Era uma bezerrota graúda. Difícil, quase impossível de ser posta ao lume do dia pelas vias normais.

Era preciso que fosse feita uma cesariana.  Mas como proceder sem o concurso de um médico dos animais?

Zezinho das Pequenas Causas, que amava e idolatrava os grandes animais. Não teve o que fazer a não ser esperar pela sorte da mãe Braúna. Mas prevaleceu o azar e a linda bezerrota nasceu mortinha. Com o cordão umbilical atado ao pescoço.

Tempos mugiram depois disso. Zezinho viu a infância desaparecer dos seus olhinhos sonhadores.

O incidente do parto da mugidora Braúna o fez escolher a profissão.

Anos depois percebi, logo à porta de um consultório, na mesma cidade onde tenho o meu, os seguintes dizeres: “médico veterinário. Doutor Zezinho Pequenas Causas. Especialista em grandes animais.”

Mais um sonho concretizado. E mais um devaneio meu.

 

 

 

 

 

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