Só me resta você

A convivência a longo prazo requer não apenas paciência como resignação.

Aturar um ao outro é tarefa por vezes inglória. Já que cada um tem suas peculiaridades e maneiras de ser.

O envelhecer nem sempre se torna um jardim florido salpicado de florzinhas amarelinhas em meio a outras murchas que se despedem da vida.

Vai ser preciso de um cuidador de flores, um zeloso jardineiro.  para mantê-las sempre viçosas e coloridas. Regar a convivência quando o secume da terra prepondera. Esperar o retorno da chuva que já vem carregada de adubo na medida certa. Para que tudo aquilo que começou entre beijos e abraços não se torne um emaranhado de xingamentos e palavras recheadas coisas que não deveriam ser ditas na exaltação da discórdia.

Velhice pra mim se trata de um amontoado de enfermidades. As dores nas juntas se juntam a falta de memória. O andar claudica. A vista mal nos permite ver bem de pertinho. De longe então não se vê a escuridão já que o sono fica curtinho. O velho dorme cada vez menos um cadinho. Tem medo da noite escura para não acordar de novo no clarume do dia.

Ao final dos anos quase nada mais nos resta. A não ser nossos netinhos que esperam ávidos a chegada do natal. Pensando sermos nós os papais noeis.

Nossos filhos, dos quais cuidamos quando ainda novinhos, assoberbados de trabalho mal têm tempo de nos visitar.

A nossa casa, de muros baixos sem grades a devassar nossas roseiras no jardim, foi vendida. E agora dona Aurora, só nos resta esperar que nos levem ao andar de cima, vivendo numa morada onde idosos esperam a hora de se mudar. Definitivamente sem direito a retorno mesmo que queiram ver seus netinhos pela última vez.

O que nos resta ao final da vida? Doenças não são bem vindas mas um dia elas vêem. Um leito na enfermaria de um hospital é o que nos sobra. Visitas só em horário marcado, já que num apartamento confortável, noutro andar, nosso plano de saúde não mais podemos pagar. Condolências ou condecorações dipenso, pois elas deveriam ser dadas em vida. Abraços e tapinhas nas costas da mesma maneira agradeço, pois no velório de nada valerão.

Dona Balbina, e seu antes príncipe sem sorte, viviam harmoniosamente nos primeiros anos de casamento. Eles viviam entre beijos sem rusgas. Depois vieram as rugas. E tudo que era doce azedou.

Seu Antonino, home bão, cujo único defeito era ser bom demais.  Com o matraquear da idade, foi perdendo a mocidade, passou a ronronar como um gato velho. Dona Balbina, ela sim, roncava e soltava flatus. Cobria a cara com as cobertas e jurava que não era ela.   Fosse frio ou mugisse o calor ela não dispensava aquele cobertor felpudo que lhe foi presenteado nas bodas, não se lembra mais de quando foi.

Eles viviam, até que bem, até que o amor soçobrou nada daquilo que era dantes.

Aos quase na aurora final de suas existências passadas.  Dona Balbina pensou em jogar a toalha. As macacoas de seu antes amado esposo a faziam pensar em mudar de vida. “A vida seria insuportável não fossem as mudanças.” Dizia ela às suas amigas fofoqueiras.

Decidida ela mudou de cama. Ali podia roncar a vontade sem importunar seu amado antes amante. Flatular lhe seria permitido (não sei se existe esse vernáculo ou foi mais um neologismo Rodarteano). Mudou de casa sem se despedir de Seu Antonino.

A principio nem sentiu saudades. Pensou agora viver novamente num jardim florido.

Foi bom no primeiro mês. Ela pensava que se bastava até certo dia. Depois elazinha, sem companhia, sentia-se soltária. As amigas da onça foram pro mato. Dona Balbina não tinha com quem rusgar. A escolha da novela preferida agora pertencia somente a ela. E seus roncos e flatus não carecia esconder debaixo do felpudo cobertor.

Agora seria ela e somente ela. Nada mais lhe restava senão viver só.

Foi quando lhe deu vontade de rever seu antigo devedor. Seu Antonino lhe devia a derradeira prestação da televisão semi nova. Da geladeira então faltava mais de metade. Do fogão de quatro bocas somavam-se quase uma dúzia. Saudades da falta que lhe fazia o chamego, antes tão prazeroso, que lhe fazia no umbigo o seu ainda amigo o querido veinho de nome bem conhecido por Antonino, antes só seu e de mais míngüem.

De volta a velha casa, de muros baixos enfeitado de roseiras no jardim. Ao ver seu bom veinho. Deu-lhe um abraço tão apertado que quase o matou sufocado.

Depois de passado o susto. Disse baixinho no seu pezinho de orelha, quase sussurrante, sibilante: “meu querido Antonino- agora, nessa malfadada hora, só me resta você. Por favor, pague minhas contas. Minha aposentadoria mal dá pra comer”.

Não sei se Seu Antonino aceitou, de volta, sua antes amada Balbina.

Eu não aceitaria. E voismecês?

 

 

 

 

 

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