Quando não mais puder

Há dias tem me importunado uma coceira e uma vermelhidão num dos olhos.

Não é a primeira vez o acontecido. Sofro de blefarite crônica. Segundo os entendidos se trata de uma inflamação das pálpebras que tem recidivado. Talvez seja devido à excessiva exposição ao sol. A secura do ar. Ao cloro da piscina que me acolhe nestes dias quentes. Não uso óculos escuros como deveria. Ando com meus olhos descobertos. Fui operado de cachoeira (nome mais poético dado às cataratas). E escrevo sempre costumeiramente pelas madrugadas.

O envelhecer nada mais é do que uma sucessão de enfermidades. Nenhures, por mais resistente e saudável que seja, não fica isento de uma gripinha leve. Tomara fique só nelazinha. E essa influenza leve não se agrave transformando-se numa pneumonia.

As dores acompanham passo a passo a senilitude. Ora elas se alojam nos quadris. As articulações sofrem e ringem com a idade. As pernas claudicam. Os olhos embaçam. O pobre coração; ah, esse pobrezinho, se pudesse chorar gritaria. A barriga espicha e acaba escondendo o pobre defuntinho ainda vivo e sequioso de sexo.

Envelhecer não é tarefa fácil. Devemos facilitá-la exercitando-nos continuamente.

“Deixe o carro na garagem”! Dizia meu saudoso pai. E eu acrescento: “corra, se não puder correr, caminhe homem. Graças às pernas fiquei de bem comigo”.

Quando não mais puder andar não ficarei em casa. Bicicletarei. Quando não mais puder amar não irei relutar em admirar as estrelas.

Quando não mais puder escrever irei gravar um livro fonado. E quando não mais enxergar? O que vai ser de mim? Pedirei por empréstimo os bons olhos de outrem e irei suplicar que eles vejam por mim.

Quando não mais puder acordar bem cedo direi ao meu leito: “enxote-me de ti.”

Quando não mais puder ver a luz não ficarei contrafeito em viver na escuridão.

Quando for privado de me exercitar por favor não me condenem à invalidez. Deixem minhas pernas, mesmo que mortas, tentarem pelo menos se mover.

Naquele dia funesto. Quando estiver pedindo para descansar, de vez pra sempre. Dêem-me mais uma oportunidade de ser útil a alguém. Aquela pessoinha querida que cuidou de mim antes do fim.

Quando não mais for possível entender o que se passa ao derredor não me deixem completamente alheio aos fatos. Apenas lhes peço que tapem meus ouvidos às noticias ruins.

E quando não mais puder fazer prosa me ensinem a poetar. Quem sabe serei mais feliz fazendo versos.

Quando não mais puder brincar com meus netinhos me deixem pelo menos admirá-los brincando.

E quando não mais puder olhar de longe as flores do campo não me impeçam de caminhar entre elas pelo jardim.

Quando for privado de amar deixe que outrem ame por mim. Não me impeça de tentar alcançar as estrelas. A lua me parece tão perto e jamais a toquei.

Quando não mais puder te abraçar abrace a mim. Não tentarei impedir seu enlace e nem me afastarei.

Quando tentarem me impedir de voar avoa junto comigo. Minhas asas são frágeis e inseguras. Nossas duas juntas podem subir às alturas.

Quando tentarem me impedir de falar que possa pelo menos sussurrar aos seus ouvidos como foi prazeroso te conhecer.

E quando não mais estiver por aqui me procure ali. Quem sabe te olho do infinito.

 

 

 

 

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