Por onde andam vocês?

O envelhecer é inevitável. A morte vem anos depois.

Pra mim ficar velho em absoluto não me constrange. Não me sinto como um traste inútil a ser jogado no lixo. E sim como uma regalia depois de tantos anos vivendo em plenitude máxima a espera do dia seguinte.

O velho já passou por tantas coisas. Já enfrentou procelas e tempestades. Já presenciou incontáveis pores do sol e adormecer da lua. Já perambulou pelas ruas um sem número de vezes. Já despertou paixões agora adormecidas. Já acarinhou filhos perdendo noites de sono quando eles ficaram febris. Já teve netos seus filhos prediletos. Já tentou dormir e não teve sucesso devido a enfermidades dele próprio ou de sua parceira. Já passou pela mocidade.  Já experimentou o sabor amaro da derrota. Mas em outras ocasiões subiu ao pódio vitorioso.

Ser idoso pra mim se trata de uma conquista memorável. Já colecionamos anos. Já aniversariamos. Assopramos velinhas temerosos de que elazinhas incendiassem a sala inteira. Substituímos os pais na ausência deles.  E como foi gostoso fazer de conta que a nossa infância veio de novo ao brincarmos com nossos netinhos. Peraltinhas insaciáveis que nos fazem de gato pensando termos sete vidas quando só temos umazinha só.

Tudo me fazia crer que velhice deveria ser o ápice da felicidade. A coroação de nossos feitos aqui na terra. A premiação que deveríamos receber por tudo que fizemos. As noites indormidas perdidas no cuidar de nossos filhos quando enfermos. Quando os presenteamos nos natais passados. Mas, como nem tudo que reluz se veste da cor de ouro.  Tive a curiosidade, um tanto mórbida, de passar uma vista dolhos numa casa de idosos.

Ali entrei numa sexta feira. Era tarde, quase noite.

Apresentei-me como eu mesmo. A freira que dirigia aquele asilo já havia me recebido de outras vezes. Na salinha que abrigava livros morava um dos meus.

Era uma senhora de aparência austera. Ela vestia um hábito creme mesclado ao branco.

Seu nome estava exposto logo acima da sua blusa- irmã Áurea.

Fomos percorrendo sala por sala daquela casa de idosos. Rostos inexpressivos, alguns, me olhavam curiosos. Outros nem davam pela minha presença.

Enfim chegamos à sala ampla de refeições. Ali estavam alguns velhinhos a espera do lanche da tarde. Com suas boquinhas irrequietas querendo dizer alguma coisa que não entendia.

Um deles me chamou a atenção.

Era uma senhorinha de maior idade. Pelo visto ela já estava prestes a chegar ao centenário.

A irmã Áurea me apresentou à idosa.

Ela aqui mora há mais de trintanos. Que eu saiba ela não nasceu aqui nessa cidade. Pelos dados compilados ela veio de outro estado. Talvez do sul. De Santa Catarina ou do Rio Grande.

Seu nome é Judite Vargas. Diz ser aparentada de um ex-presidente. Não sei até onde vai a sua verdade.

Ainda lúcida e presente proseamos longamente. A irmã Áurea deixou-nos a sós pois tinha outros afazeres.

Dona Judite pediu que me assentasse defronte e bem pertinho dela. Ela pouco escutava. E falava bem alto num sotaque bem sulino.  Num português perfeito ela se expressava.

“O senhor mora aqui também? De onde veio? Meu nome é Judite Vargas. Nasci no Rio Grande do Sul em um mil novecentos e vinte e três. Na mesma cidade de um primo chamada de São Borja. Lembra-se de Getúlio? Ele era baixinho e meio bravo. Foi nosso presidente no passado. Ainda me lembro dele. Um dia ele veio a nossa casa dizendo que seria presidente do Brasil. Dito e feito. Estou aqui e nunca me visitaram. Parece que meus parentes, se ainda os tenho. Nem sabem que eu existo”.

Ela fechou os olhinhos claros e continuou: “por onde andam vocês todos? Já me esqueceram? Não se lembram mais da sua tia pequenininha? Aquela que cuidou de vocês? Meus sobrinhos netos. Morei na sua cidade por muitos anos. Não me casei para cuidar de vocês ainda meninos. Deixei São Borja aos vinte anos. Era uma moça linda e prendada. Disputada e cortejada por bons partidos. Tive alguns namorados.  Deixei escritas algumas cartas de amor mas não me responderam. Até me apaixonei uma só vez. Agora vivo solitária nessa casa de idosos. Não me queixo. Por vezes choro. Derramo algumas lágrimas e elas secam na minha face. Por onde andam vocês? Teria alguém ainda para me visitar? Aqui vivo até quando não sei. Estou quase nos cem. Sem ninguém a me consolar”.

Deixei a dona Judite debulhada em suas lembranças. Tentei enxugar algumas lágrimas que escorriam em cascata pela sua face sulcada em anos. Ela se despediu com um afetuoso abraço dizendo: “volte sempre meu querido sobrinho.”

 

 

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