O tempo não para. Os anos passam. O envelhecer se torna inevitável e inquestionável.
Quando nos vemos no espelho ele nos diz, com sua cara espelhada, que reflete nada mais que a verdade: “vê se te enxerga. Se não vês bem consulte um médico das vistas. Quem sabe precisas de um bom par de óculos. Não vês que tu estás meio cegueta? Cuidado ao sair às ruas. Um poste pode ser confundido com uma linda mulher. E se te esbarras nele, pensando ser ela, podes receber um galo na testa ou um chutão nas partes baixas. O teu consolo é que o tal pinto não funciona mais. E mal serve pra urinar”.
A ser velho prefiro ser chamado idoso. Não vaidoso, pois vaidade não a tenho mais.
Lá se foram os anos quando me olhava no espelho. Lavava minha fuça. Penteava minhas melenas topetudas. Dava um trato no meu bigodão negro como a asa da graúna. E dizia a mim mesmo: “olha como tu és bonito. Qualquer garota que te olha logo vai se apaixonar. Agora só lhe resta a velha pra se consolar”.
Velhice, pra mim, não se trata de um fardo pesado pra carregar. Tenho forças suficientes para erguer o mundo inteirinho sem dobrar os joelhos. Meus braços são puras pelancas. Minhas pernas, então, são rijas como o cerne da velha amoreira.
Não troco meus setenta e quatro anos por nenhum vinte anos de qualquer molequinho que se exibe para as meninas pensando ser a última bolacha do pacote. Mal sabe ele que não careço de nenhum comprimidinho azul para empinar minha pipa. Um capinzinho novo me basta para subir às alturas. Ai se minha veinha soubesse das minhas travessuras. Eu iria ficar de castigo ajoelhado numa espiga de milho bem dura. Até quando jurasse e desconjurasse que seria ela o único a verdadeiro amor de minha vida.
Meu cumpade e amigo de verdade. Que só ainda não morreu por falta de vontade. Ele já esteve no bico do urubu uma dúzia de vezes. E só escapou graças a sua veinha. Uma muié pra lá de espertinha. De nome Dorotéia. Cujo nome rima com veia. Elazinha tem mais idade que a serra que daqui se oia. Seu derradeiro aniversário foi celebrado há quase cem anos. Se mais, não fui convidado. Dorotéia ainda enxerga além das entrelinhas. Sabe como ninguém onde seu veinho passou a noite. Em companhia dele mesmo, dai, não esquenta a pioenta. Ela faz tricô e tricota vida dos outros. Fofoqueira como ela só.
Anos se foram. Tanto a veinha Dorotéia. Como seu veinho Antonino. Vivem solitários naquele pedacinho de terra ermo. “O dia em que saírem de lá só no caixão. Com a condição de serem sepultados, de mãos dadas, no mesmo ataúde branquinho. Debaixo da bananeira que já deu cacho”. Vangloria-se ela. E seu veinho concorda. Senão…
Quando os dois veinhos completaram muito mais da maior idade. Lá se amontoam anos. Uma festança foi preparada pela vizinhança.
À efeméride compareceram alguns poucos gatos pingados. Na idade que os dois veinhos comemoravam restavam pouquíssimos. Dona Aurora era a mais longeva. Ela contava com mais janeiros que todos os fevereiros juntos e agregados. Dona Alzira sofria de uma ziquizira sem tratamento. Ela perdia a noção de tempo só de pensar quando ela era novinha. Seu Barnabé já teve bicho de pé. Faz tanto tempo que ele perdeu a conta.
Ao final da festa. Já era madrugada alta. Dona Dorotéia e seu Antonino não viam a hora de se despedirem dos seletos convidados. Mas eles teimavam em não sair. Pra lá da porteira aberta era o caminho sem volta. Mas eles iam e voltavam revoltados. “Ainda era cedo”. Diziam querendo ficar.
O dia seguinte amanheceu clarinho com o sol despejando seus raios lá no alto. A lua ainda bocejava de sono.
Dona Dorotéia e seu veinho ficaram só eles dois. E acabaram morrendo do jeitim que gostariam.
Abraçadinhos, de mãozinhas dadas no mesmo caixão. E foram sepultados ao pé da mesma bananeira que já havia presenciado tantos cachos. Por cima da sepultura a seguinte frase lapidar, escrita por inspiração da dona Dorotéia: “só fiquemo nois dois. Nem a morte nos separou”.
Assim seja, amém. Inseri eu.