Diz um dito, de muita sabedoria: “não deixe para amanhã aquilo que deve ser feito hoje”.
Mas quem diz que assim se pratica? A prática deveria levar à perfeição. Mas essa está longe de ser alcançada. Por mais que a gente tenta e inventa deixamos o agora pra depois. Amanhã é outro dia. Deixa pra amanhã, cedinho, a hora que a gente acordar, essa tarefa ingrata. Que mais uma vez é postergada. Em alguma hora vamos executá-la.
Em boa hora lhes recordo. Entramos outubro. Precisamente no dia dezoito celebra-se, embora sem muita alegria, o nosso dia. Dos esculápios. Protagonistas principais da coisa mais importante que se tem em vida. Uma coisinha chamada saúde. Que quando se perde perde-se o principal. O bem estar que sentimos. Uma dorzinha aqui e outra acolá nos faz lembrar desses abnegados e heróicos personagens que dantes vestiam branco. Já hoje trajamos qualquer cor por mais desbotada que seja. Desde o azul violeta ao vermelho que enseja um partido político que nunca mais vai ter meu voto.
Esse costume de deixar pra depois me fez lembrar de um meninozinho. Cujo nomezinho era Julinho. Não me recordo o sobre. Sei sim que o sonho dessa criança era cursar medicina.
Mas, vivendo numa rocinha erma. Quase onde mora o fim do mundo. Esse menino estudioso. Bom aluno salvo no português. Que trocava o c cedilha por dois ss. E não havia meio de remediá-lo. Mas na matéria que trata os números ele o fazia com maestria. Era o tal.
Naquela escolinha pertinho da porteira. Que um dia se mudou pra cidade. Ele foi indo, devagarinho. Sempre prontinho a ajudar ao pai nas tarefas rurícolas. Era um tal de ordenhar as vacas sempre a mesma hora madrugada. Apartar os bezerrinhos de suas mães chorosas e mugidoras. Dar de comer a porcada grunhenta sempre faminta. Colher os ovos escondidos no ninho ao pé da bananeira que só ele sabia onde era.
Julinho se desdobrava em três ajudando ao amado pai.
Ele não era de deixar pra depois. Fazia o que tinha de fazer na hora certa.
Uma vez terminado o curso secundário teve de se mudar pra cidade. Era ali que poderia ver concretizado seu sonho de ser médico. Era agora ou nunca. Não poderia deixar pra amanhã.
Mudou-se para a casa de um tio torto. Não tinha recursos para se manter numa república de estudantes. Seu amado pai vivia na roça. Mal tinha renda para se manter naquela ocupação que lhe rendia tão pouco.
Julinho foi persistente. Não desistiu na primeira reprovação ao vestibular de medicina.
Continuou a estudar. Varava noites com os livros sob os olhos atentos.
Sempre atento a sua máxima de vida: “não deixa pra depois o que deve ser feito hoje”.
Mas o hoje pra ele era difícil. Uma jornada quase impossível de ir a bom termo.
Mesmo assim Julinho enfrentava galhardamente as vicissitudes da vida. Trabalhava durante as noites. Dormia um cadinho e acordava nos estudos.
Enfim conseguiu seu intento. Foi aprovado no segundo vestibular. Mas a faculdade era privada. De mensalidade fora do seu alcance. Mais uma vez o jovenzinho teve de deixar pra depois. Um depois sem data marcada. Uma hora ele chega.
Dois anos se foram. Três deixaram rastro.
Aquele jovem estudioso continuava a sonhar com medicina. Era um sonho quase inalcançável. Difícil, se não impossível, nas circunstâncias atuais.
Julinho, depois de quase desistir, enfim foi aprovado numa universidade federal.
Ali passou seis longos anos. Até que se graduou como louvor entre outros jovens esculápios.
Éramos cento e sessenta jovens profissionais a serviço da saúde de terceiros.. Sem direito a se preocupar com o próprio bem estar.
No ano seguinte Julinho gostaria de se especializar em alguma parte do corpo humano. Que se divide em nacos indivisíveis. Mas a medicina atingiu tal complexidade que se tornou impossível abraçá-la como um todo.
Mais uma vez Julinho teve de deixar pra depois tudo aquilo que gostaria de fazer. A residência médica teve de esperar mais uma vez.
Assoberbado de trabalho. Dando plantões aqui e acolá. Ele teve seu sonho adiado. Até quando? Não se sabe.
Um dia o encontrei. Ele saia de um hospital em direção ao outro. Olhos sonolentos. Mais uma noite indormida.
Foi quando a ele perguntei: “doutor. Quando você vai concretizar seu sonho? Ser um especialista a exemplo de seus colegas”?
Ele me respondeu. Com o semblante carregado de amargura.
“Agora não posso. Tenho algumas bocas a tratar. Tenho de deixar, mais uma vez, pra depois”.