Aquela sexta feira acordou radiante.
Setembro quase se despedia para dar a vez de outubro chegar.
Que com ele viesse a chuva. Pensava, com seus pensamentos, que se amontoavam dentro dele numa crescente. Aquele homem do campo. Cujo nome era Ariosto. Pessoa preparada para enfrentar o secume do tempo assim como as adversidades da vida. Nos seus muitos janeiros que se deixavam substituir por fevereiros. Meses afora até chegar dezembro.
Naquela manhã de sexta feira. Semana suspirando para terminar. O céu amanheceu meio acinzentado. Nuvens escuras mostravam ao fundo o sol querendo alumiar.
Quem sabe nesse final de semana iria chover? A tal chuva não dava a cara molhada. A poeira da estrada tintava os carros na cor de palha ressequida. Quem por ali passasse chegaria ao seu destino cuspindo tijolos. Tal o secume do ar.
Seu Ariosto, pessoa de mãos ásperas e tez curtida pelo sol. Há alguns anos atrás tinha companhia. Mas de repente se fez só. Perdeu a única pessoa que realmente amava. A esposa se despediu sem pedir licença e foi morar no céu.
Deixou, a sua ausência, uma lacuna impreenchível por detrás dela. Era não somente a única que amava com todas as forças da qual se lembrava com olhos rasos d’água.
Ela se chamava Aurora. Dona de um sorriso encantador. Uma pessoa admirável.
Não tiveram filhos. Nem netinhos a puxarem sua barba. Eram um pelo outro.
Quando dona Aurora morreu Ariosto acompanhou o cortejo até o campo santo segurando a alça daquele caixãozinho branco. Pensou em ficar por ali. Ela morreu e ele morreu junto dela. A maior razão de estar vivo.
Tempos se foram. A primavera disse adeus ao inverno quente e seco.
Outubro se anunciava. Céu azul e sol a brilhar forte.
Cadê a chuva? Perguntava-se por aquelas bandas. O sol sorria no alto. A lua se recolhia na azulice do céu.
Naquela tarde de sexta feira passei por ali. Havia me desviado do meu caminho. Perdido estava.
Entrei porteira adentro. Não sabia por onde voltar.
Encontrei um senhor carpindo o pasto. Era um sarandi sujo e intrincado. De difícil carpição.
Parei um cadinho. Queria saber onde estava.
Aquele senhor me recebeu cordialmente. Deixou a foice do lado. Convidou-me a entrar em sua morada.
Ali dentro imperava o sossego. Tudo rescinda a limpeza com um cheirinho bom de alecrim do campo. Na trempe ainda fumegante do fogão a lenha parece que nos esperava um bule de café e do lado um queijinho recém retirado da forma.
Numa prosa boa Seu Ariosto me recebeu.
Depois de me enfarar com nacos generosos daquele queijo gostoso. E servir-me de duas xícaras de café passado na hora. O dono da casa deu-me a entender um cadinho de sua vida.
Começou falando, com a voz entrecortada de lágrimas, da perda recente da esposa querida. Aurora era seu nome. Um retrato, em preto e branco, repousava acima de uma mesa do lado. Era uma mulher realmente linda. De olhos azuis. Pele clarinha como algodão sem corante. De boa estatura, segundo ele mesmo atestou. Dona Aurora era a razão de sua felicidade. Que acabou sendo sepultada no mesmo túmulo onde ela hoje mora. Permanecemos horas inteiras em nossa conversa que parecia não ter fim. Era um desabafo daquele senhor já bem andado em anos.
“Tenho muito no que pensar. Não sei quanto tempo me resta. A vida pra mim perdeu o sentido desde que ela se foi. Ela pra mim era tudo. Agora não tenho nada mais. Se eu morrer amanhã morro feliz, pois bem sei que irei encontrá-la. Vago pela noite pensando sempre nela. Penso como éramos felizes juntos. Ela e eu nos bastávamos. Agora que ela se foi perdi meu rumo. Durmo pensando nela. Sonho com ela e acordo em sobressalto, pois não mais a tenho ao meu lado. Abraço o travesseiro pensando ser ela. Amarfanho os lençóis na ausência dela. Meus pensamentos se resumem nela. Não vejo a hora mágica de nosso reencontro. Conto as horas para de novo tê-la em meus braços. Sedento por um beijo dela.”
Era hora de ir embora. Agradeci a amável hospitalidade. Deixei aquele senhor, de nome Ariosto, entregue aos seus pensamentos. Sempre pensando nela. Como eu sempre penso na vida; sem me esquecer dela.