Era comum vê-lo, todas as tardes, naquela academia onde frequento, pedalando lépido aquela bicicleta, que não se move. De repente ele se fez ausente.
Chico é uma pessoa acima de qualquer defeito. Proseador, simpático, reformado do exército de onde se aposentou como subtenente. Tempos idos se foram.
E como era bom ficar ao seu lado. Passávamos horas perdidas em prosas boas. Sempre as mesmas.
Tudo aconteceu depois de uma queda. Ele, meio desnorteado, caiu numa rampa de acesso àquela sala ampla onde se pratica exercício.
Faz um tempão que ele desapareceu. Preocupados ficamos todos nós, amigos e admiradores.
Num dia desses fiquei de fazer-lhe uma visita. Carecia de saber notícias sobre a saúde do meu amigo Chico Bento.
Era já tarde quando deixei a academia. Sabia, por informação dele mesmo. Que Chico morava numa casa mais acima do nosso clube.
Subi uma ruinha inclinada. Por uma estrada meio esburacada até outra rua no alto de um bairro de classe média. Não sabia bem onde ele residia. Nunca havia estado por aquelas bandas. Foi a primeira vez.
Indaguei a um morador da região se por acaso conhecia o velho Chico. Ele, com um meneio de cabeça, fez que não.
Andei mais alguns minutos. Fui andando pela rua até uma casa modesta. Dependurada num barranco sob o risco iminente de desabar às primeiras chuvas. Bati palmas pra me anunciar.
Um cãozinho sarnento latiu e abanou o rabinho. Era um cãozinho amistoso de aparência faminta.
Como nenhures me atendeu pensei estar no endereço errado. Minutos depois a porta se abriu.
Uma vozinha conhecida me intimou a entrar. Logo reconheci, naquela pessoinha alegre, meu amigo Chico Bento.
Ele logo foi dizendo: “puxe uma cadeira. Você tem tocado gado? Ou caçado tatu? Como tu tá”?
Era essa prosa que palrávamos quando na academia. Durante aquela meia hora quando nos encontrávamos.
A televisão estava ligada. No momento candidatos expunham suas idéias naquele horário indigesto na televisão.
Chico fez questão de desligar aquele aparelho. E me deu atenção.
Fiz-lhe saber a falta que ele fazia na academia. Era o porta voz das mensagens de todos que sentiam a sua ausência.
Chico me disse ser recíproco o que sentia por todos nós. Ele me pareceu meio ausente. Estava só.
Foi quando aquele amigo de tempos antigos me revelou suas idéias. Creio que não estava bem com elas mesmas.
“Meu amigo caçador de tatu. Tem tocado gado? Eu to todo cagado. Tenho ficado em casa por recomendação do meu médico. Depois daquela queda bati a cabeça. E ando meio com fuso errado. Não sei se estou aqui ou na banda de lá. Assisto à televisão, mas desligo-me da vida. Já nem sei quem sou mais. Se um sargento sarnento ou um general. Sinto falta de exercícios. Sempre me exercitei no exército. Agora estou afastado da lida. Se pudesse voltaria à academia. Mas no momento não me deixam. Não seria possível trazer a academia pra aqui pertin? Tenho medo de me perder. O rumo já perdi. Por que você não veio antes me visitar? Tenho uma cachacinha boa demais. Só não a ofereço, pois não sei onde ela está. Minhas idéias andam confusas. Não sei se é noite ou dia. Se acordo de noite abro a janela e vejo que o dia ainda não aconteceu. Sou de Nazareno. Já o disse a você. O que eu disse mesmo? Me leva pra academia. Agora não posso ir. Quem sabe vamos noutro dia. Se a luz alumia sei é dia. Se está escuro a noite chega. Ah! Sabe fazer comida? Cacei um tatu a noite passada. Olha na geladeira se ele está ali. Minhas idéias andam confusas. Imagino que ando meio lerdo. Seria verdade”?
Já era tarde. Quase noite alta. Tinha de ir embora. Meu amigo Chico Bento se despediu de mim com um afetuoso abraço. Percebi, no seu olhar vago, indícios daquela doença cujo nome é Alzheimer. A mesma que ceifou a vida do meu saudoso pai.
Agora me falam por dentro saudades dos dois.