Quase impossível predizer a hora exata de nossa partida.
O dia certo de nossa despedida.
Já que vivemos na incertitude das horas como prever o dia exato de nossa morte?
O meu dia já o tenho marcado. Tomara seja num trinta e um de fevereiro. Antes que outro dia nasça. Uma data por mim elegida. Das tantas que o calendário mostra.
Bem sei a hora em que aqui chego. Sempre antes das seis da manhã. Quando o sol, timidozinho, ainda desponta. Despedindo-se da lua dizendo até amanhã.
Retorno ao meu aconchego. Quando não existem pacientes agendados para a parte da manhã. Alguns minutos antes da dez. Espero impacientemente a hora do almoço. Que acontece imprecisamente ao meio dia. Volto aqui exatamente às treze. Já as quinze vou à academia. Exercitar o físico já que a mente está desperta desde quando acordei.
Durmo pouco. Seis horas me bastam. Não tenho pela noite em alta estima. Prefiro o clarume dos dias à escuridão das noites altas.
Sou um madrugão inveterado. Como um padeiro ou um retireiro que sempre acordam ao cantar do galo. Fecho os olhos e tento dormir. Mas meus pensamentos me levam pra bem longe. Se digo que sonho não tenho pesadelos. Vivo sem atropelos. Pelo menos tento me livrar de problemas.
Foi ontem o sucedido. Aqui apareceu um paciente inesperado. Ele aqui compareceu quase antes de fechar as portas da minha oficina de trabalho.
Era mais ou menos cinco da tarde. Estava me preparando para ir embora. Ontem estava uma tarde quente. Temperatura em alta.
Seu Aristeu, se não me engano era esse seu pré nome. Veio trazido por um filho de mais idade.
Ele contava com quase noventa. Seu primogênito beirando os setenta.
Seu Aristeu pouco falava. Murmurava palavras de pouco entendimento. Foi preciso paciência para tirar dos dois alguma informação.
Depois de alguns intermináveis minutos o idoso me confidenciou o que o trazia ao meu consultório. De olhinhos úmidos pelo sofrimento ele assim falou: “doutor. Um caroço apareceu no meu pênis. À principio não me incomodava. Acredito que ele nasceu há mais de dois anos. E tem crescido. Não me estorva de urinar. Ele fica bem do lado. Tem doido de uns tempos pra cá”.
Uma vez tendo conquistado sua confiança levei-o à sala de exame. Não foi preciso pedir que ele se despisse. Ele o fez em segundos.
Depois de ter aferido sua pressão arterial. De auscultar os batimentos de seu coração. E apalpar-lhe o abdome criteriosamente. Enfim desci mais abaixo. Examente no lado esquerdo da glande um enorme tumor se mostrava. Era do tipo que não deixava dúvidas de sua natureza maligna. Já necrosado e enraizado à distância. Percebi nódulos na região da virilha. Uma úlcera profunda era sugestiva de se tratar de uma metástase.
Na hora não lhe falei da gravidade da doença. Ele talvez se iludisse e pensasse ser coisa de fácil tratamento.
Do lado de fora da sala de exame seu filho demonstrava preocupação. Ele não. Pessoa acostumada a receber más noticias seu Aristeu a tudo ouviu sem nada dizer.
Não podia omitir nenhum detalhe. Meu diagnóstico saltava aos olhos sem carecer de nenhum exame complementar. Uma biópsia só iria encompridar seu sofrimento. Já havia tido casos semelhantes. Mas tão avançados ainda não.
Uma amputação radical talvez fosse a indicação. Mas antes ele deveria ser encaminhado a um oncologista. Quem sabe um tratamento coadjuvante prévio iria melhor a gravidade da operação.
Seu Antenor, mostrando na face uma candura que só a sabedoria poderia dar despediu-se de mim dizendo assim: “obrigado doutor. Sei que o senhor faria o melhor pra mim. Mas sei, pelos seus olhos, que minha doença está bem avançada. Que tenho quase nenhuma chance de me curar. Meu câncer já se instalou pelo corpo inteiro. Já passei da idade de me despedir da vida. Enfim chegou a hora da minha partida. Saio daqui satisfeito. O senhor não me iludiu. E disse o já esperava”.
Espero que meu querido paciente saiba esperar a hora de sua partida com o mesmo sorriso na face.
Ele apertou-me a mão e nunca mais o vi.