Perrengues de um jovem especialista

Quem pensa que ao fim de nossa jornada de médico a gente já sai podendo operar as intrincadas mazelas do corpo humano se engana redondamente.

O saber demanda uma infinidade de tempo.

Tudo começa no curso primário no aprendizado das primeiras letras.

A seguir vem o secundário.  Nem bem a quarta série termina e já devemos pensar qual profissão seguir. Ai a indecisão pode durar anos. Já que ainda não temos idéia. Dentre muitas delas. Qual aquela que mais nos atrai.

Um obstáculo que pra muitos pode ser instransponível aparece em nosso caminho. O tal vestibular mete medo a muitos jovens. Mas uma vez vencido pensamos sermos vitoriosos na dura empreitada chamada vida. Que apenas se mostra no meio do caminho. Ainda restam muitas outras dificuldades. Que aos fracos abate. Aos fortes e aos bravos só deve exaltar.

Naqueles idos anos o curso de medicina em nossa turma de graduados em um mil novecentos e setenta e quatro durava apenas cinco anos. Fomos os últimos moicanos.

Ainda me lembro da colação de grau. Foi num ginásio lotado da capital das Minas Gerais.

Cento de sessenta esculápios receberam o certificado em forma de um lindo pergaminho. Ainda o tenho guardado na estante por detrás de mim.

Mas aquele canudo ainda não nos possibilitava exercer nossa profissão. Muitos de nós desejávamos ir mais longe. Especialidades dispares nos acenavam de mãos estendidas.

Eu sempre sonhava com umazinha que se destacava das demais. Uma pedrinha em curso pelo ureter encalhou no meio do caminho. “No meio do caminho tinha uma pedra.” (um belo dia poetou Drummond). E minha pedrinha marota teimava em não ver a luz do dia. Foi preciso a ajuda de um especialista para que ela nascesse.  Mas outras me fizeram urrar de dor anos mais tarde.

Foram dois anos de urologia num hospital de ponta da capital mineira. Aqueles dois anos não me saem dos pensamentos.  Desdobrava-me entre três hospitais em operações e plantões que varavam noites. Dai a minha aversão pelas noites. Tenho medo delas. Prefiro o clarume dos dias à escuridão das noites.

Minha especialização pela urologia se estendeu pelas terras de Espanha. Madrid me acolheu friamente no mês de setembro começo de inverno. Foi um ano inteiro de olhos abertos vendo, ouvindo e me calando para não molestar.

Foi em Madrid que me aperfeiçoei na cirurgia de próstata por via uretral. A tal ressecção endoscópica de próstata sem abrir o abdome como estava acostumado.

Aqui na minha Lavras amada cheguei usando um tamanco e uma barba vermelha que hoje se a deixasse estaria parecido ao Papai Noel.  As longas e bem cuidadas madeixas não existem mais. Quando me olho no espelho ele me diz como você era bonito. Agora sou idoso. Deixei a vaidade pra quando era mais jovem.

Fui o pioneiro da cirurgia endoscópica de próstata por aqui. Nunca alguém a tinha feito.

E como tremi nas primeiras vezes. Minha mão tremulava como uma bandeira agitada ao vento.

Ainda me lembro de uma manhã ensolarada. Como essa que nessa hora se anuncia.

Tinha uma operação agendada na Santa Casa para antes das seis. Ali cheguei meia hora antes. Como sempre fui apressadinho.

Preparei cuidadosamente o balde de irrigação. Meu ressector novinho já estava por sobre a mesa.

Anestesia raquidiana já dava sinais de ter sido eficaz.

O paciente era um velho professor de veterinária da antiga faculdade de agronomia hoje UFLA.

Seu nome não vou declinar para não ferir o decoro de nossa profissão.

Tudo corria nos conformes durante a operação de próstata via uretral. Creio ter sido uma das primeiras que fiz.

Mas como sangrava em abundância. O liquido de irrigação ao final do ato operatório não ficava como água da mina. Era de uma tonalidade vermelha de um sangue rutilante.

Uma vez finda a cirurgia. Ressecados umas tantas trinta gramos de tecido prostático o paciente foi encaminhado a UTI. Seu estado era mais ou menos estável.

Foi uma noite terrível aquela. Do lado de fora a família a toda hora me pedia noticias.

Mas o liquido de irrigação não clareava. O sangramento me fazia perder o resto de juízo que me restava.

A sonda entupia a cada hora. A enfermagem alvoroçada me chamava a cada minuto.

Temendo o pior tive de levar o paciente a um hospital na capital. Fui com ele na mesma ambulância na parte de trás. Cuidando da sonda para que ela não entupisse.

Passamos uma semana inteira até que a urina saísse clarinha como água de um riachinho de águas cristalinas. Só faltou o lambarizinho de rabinho vermelho que costumava pescar nos meus tempos de menino.

Voltamos a Lavras com meu paciente mais paciente e eu também. Prontinho a enfrentar outros perrengues anos afora.

Não pensem que é fácil a vida de nós médicos. Merecemos cada tostão que percebemos. E menos puxões de orelhas.

 

 

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