Muitos dizem ossos do oficio.
E quem não os tem?
Qualquer profissão coleciona um montão deles.
Seja no ofício de pedreiro. Que seja carpinteiro ou pintor de paredes. Peão que o cavalo acaba derrubando na doma. Faxineira que a patroa não quer pagar o valor que ela pede. Mas exige a casa limpinha e cheirosa exalando um perfume de rosa. Como tanto pode ser o serviço pouco valorizado dos garis. Maratonistas da limpeza urbana. Jovens que correm atrás do caminhão de lixo felizes da vida sem reclamar. Ou até mesmo o retireiro madrugão que acorda bem antes do patrão. Aqueles heróicos homens do campo pra quem não tem tempo ruim. Seja numa madrugada fria ou no calor escaldante do verão.
Assim caminha a humanidade pra quem trabalha duro. Nesse mundão escuro como nessa manhã cujo sol ainda não acordou nesse dia começo de semana. Nessa segunda feira quase madrugada. E eu aqui estou como de rotina. A retratar o cotidiano que tanto me fascina. A espera de pacientes que devem aparecer a partir das oito. E se não vêem quem sabe num amanhã incerto eles aparecem. Nesse meu oficio que exige de quem o pratica muita paciência e resignação. Já que a medicina não é uma profissão como outra qualquer. Pois ela trata do bem mais precioso que nos foi ofertado desde que nascemos. A saúde e o bem estar de nós mesmos. Ditos seres humanos que podemos perder a humanidade por ignoramos o sofrimento de nossos símiles. Pessoas como a gente. Que nasceram em berços não esplêndidos. Pobres, miserentos, que continuam a viver de teimosos. Pois são tantas as vicissitudes que enfrentam e não se dobram a elas pois são fortes. Obstinados, estóicos trabalhadores desse imenso pais tão desigual. Onde os ricos e abastados detém bem mais da metade da riqueza nacional.
Todos nós temos os nossos ossos do oficio. Outros mais e os demais menos.
Na minha caminhada. Nessa minha longa jornada pelas trilhas tortuosas da medicina. Embora tenha pela minha especialidade em alta estima. Alguns tropeços quase me fizeram ir ao chão.
Só não caí por ter-me equilibrado numa escora qualquer. Só não desisti por ter amor à profissão que elegi. Só não perdi a fé por acreditar num ser superior.
Mas que os destemperos do oficio existem não restam dúvidas.
Nós, médicos, depois de longos anos de estudos pensamos enfim estarmos capacitados a enfrentar as doenças. Mas elas são tinhosas e não se deixam vencer.
E quem somos nós? Meros seres viventes. Médicos recém emersos de escolas que não nos preparam para a realidade dura e cruel que só a vivência nos ensina aqui de fora. A mercê de baixos salários. Trocando noites pelos dias em plantões intermináveis. Sujeitos a maledicências da mídia. Que só noticia coisas ruins. Em detrimento das boas que não dão ibope.
Ossos do oficio muitas vezes nos fazem entalar. Como se um ossinho de frango ficasse alojado em nossa garganta e quase nos sufoca faltando ar.
Posso citar uma infinidade deles.
Quando alguém marca uma consulta e nem ao menos tem o cuidado de avisar que não pôde vir. E quando algum consultante sai de nossa oficina de trabalho falando mal da gente. Dizendo, às nossas costas, que a consulta foi rápida demais. E não prescrevemos nenhum fármaco por acreditar que nossa doença não caberia remédios e sim um tempinho a mais.
E quando nos param nas ruas. Onde não é o lugar ideal para se consultar. E nos pede um minuto de atenção. E nos perguntam: “doutor. Já me consultei com vários especialistas. E não deu resultado. Continuo com as mesmas queixas. O que fazer”?
Dá-me vontade de pedir que ele abaixe as calças. E me permita vez como anda a saúde de sua próstata. Já que ele já passou da idade de ser examinado.
Muitas vezes me pedem. Pelo telefone. Que esclareça uma questão. Por que razão a sua ereção não se dá como deveria? Seria por falta de quê? Poderia tomar um remedinho? Um azulinho resolveria o problema? Mais uma vez me dá vontade de cobrar o conselho. Mas quem diz que o consultante iria fazer um Pix?
Um dia. Era bem tarde. Um desconhecido me parou pertinho de casa. Uma vozinha esganiçada assoprou aos meus ouvidos: “doutor. Você não se lembra de mim? Já me consultei com você há mais de trintanos. Agora já passei dos sessenta. Tenho mesmo de fazer o exame de próstata? Estou urinando muito a noite. A minha urina cheira mal.”
Naquela hora pensei. Quem sabe ele abaixaria as calças ali mesmo. Só que de dedo desenluvado não me atreveria a fazer tal exame. Quem sabe amanhã cedo. No local apropriado?
Os destemperos do oficio existem. Quem não os tem deveria escolher outra profissão.