Dizem, com muita propriedade- o hábito veste o monge.
Não seria melhor dizer- o costume se adéqua a quem usa?
No calor, como nesse verão, a gente usa roupas frescas e folgadas. Que não nos deixam completamente desnudos. Mas escondem o principal. Aquilo que não deveríamos esconder deveras. Mas a prima Vera, completamente despudorada. Costuma sair pelada à rua exibindo sua nudez como forma de contrariar as normas vigentes nesse país onde a falta de decoro confronta com a ética e a decência em desuso. Soberbamente nas altas esferas. Onde prevalece o mais ter sobre o mais ser. Esquecendo-nos do mais importante que deveria o ser. Ser humilde, desprendido. Jamais iludindo a outrem. Sejam sicranos ou beltranos. Já que nosso próximo deveria estar mais perto da gente. Quem esmola não deveria ser considerada pessoa não grata. Já que ele deve ter sido alguém. Mas esse alguém, por circunstâncias adversas a sua vontade, numa hora ingrata teve de viver nas ruas. E não mais consegue voltar a sua vida de dantes. E tem de ficar a sombra de uma sociedade que só privilegia gente abastada em detrimento daqueles que nada tem.
A gente veste a vestimenta de acordo com as circunstâncias. Se faz frio temos de nos agasalhar. Se faz calor a roupa passa a ser desnecessária. No caso de a chuva cair mister se faz nos protegermos das intempéries.
Mas ele, meu amigo da roça, Tom Zé, esse é o nome com que o chamo, abreviando Antônio José, mais fácil de pronunciar. A essa hora, quase madrugada, já deve estar há muito de pé.
Abre a janela do seu quarto. Onde mora só. Deixa por ela entrar um raiozinho de sol já que na noite de ontem choveu.
Escova o que restou de seus dentes. Recoloca a velha dentadura mal dormida num copo cheio d’água.
Ajeita como pode. Já que não tem ninguém a fazer nada por ele. A sua velha cama, estendendo lençóis e amassando o travesseiro furado por onde saem penas de pato rouco.
Toma um cafezinho requentado, feito na noite de ontem, naquele velho bule caindo aos pedaços. Esquenta um pão murcho e mofado sobre a trempe do fogão a lenha que ainda crepita.
Veste a roupa suja, a mesma do mês passado, que se levanta sozinha, de tão durinha que se mostra.
E vai ao curral tirar um leitinho pouquinho da única vaquinha que sobrou das duas dúzias que antes tinha.
O relógio já mostra quase seis da manhã. O céu de repente se acinzenta.
Cai uma aguaceira e com ela uma enxurrada desce a ladeira alagando tudo ao derredor.
Uma água barrenta entra casa adentro. Tom Zé nem se lamenta.
Acostumado aos percalços da vida pra ele tudo aquilo são águas que nem movem as pás do seu moinho d’água onde antes fazia fubá.
Tom Zé nunca foi de reclamar. Nos seus quase setenta nenhuma doencinha o fez procurar ajuda médica. Salvo em menino. Quando uma caxumba descida o fez virar roncolho. Mas um tento só não o impediu de ter cinco rebentos. Cada um com uma mulher distinta que nem era tanto.
Naquela manhã quente, de um mês de janeiro que se foi.
Ele apareceu aqui no meu consultório. Era final de expediente. Estava prestes a ir embora.
Tom Zé, com aquele jeitinho de moleque artioso, disparou-me na cara um monte de queixumes.
“Dotô. Tô com a urina intupida. Num mijo nem assentado. E arde cumo jiló verde infiado nu fiofó. Aqui vim pra modis di o sinhô mi trata. O que devo tomá?”
Na hora me deu uma dozinha danada do meu amigo Tom. Gente muito melhor que a gente.
Sem defeitos, quase.
De fato a urina estava retida na bexiga. Levei-o a sala de exame e enfiei uma sonda fininha uretra adentro. Encheu quase dois baldes de urina mais que fedida. Ele soltou uma imprecaução de puro alivio: “ai que bão”!
A consulta terminou num repente. Repentinamente num átimo de segundos.
Quis ainda saber como ele se sentia naquele exato momento. Se havia melhorado ou não.
Foi quando ele me respondeu: “que memo sabe? A gente se acostuma com tudinho. A dor que sintia sumiu. Se ela vortá qui mar que faiz? A vida pra mim perde a disgraceira si tudo corrê mior qui isso. Mas, vosmecê, qué coisa mió qui choriço feito agorinha memo? Vindo das tripa do porco capado mortinho da silva”?
É verdade. Nem cobrei o atendimento. Ficou na conta do Abreu. Se não pagar nem eu.
De fato. A gente acaba se acostumando a quase tudo. Até mesmo a rir da própria desgraça de terceiros. Já que a da gente dói nos cotovelos.