Sou verdadeiramente um afortunado.
Nasci num lar bem ao estilo daquilo que se pode dizer beirando a perfeição.
Conheci, assim que meus olhinhos se abriram quem foram os autores do recém nato que era eu. Talvez não tenha sido aquela cidade que tenha me visto nascer. Já que em Boa Esperança, terra de tantas pessoas célebres, foi lá mesmo que pela primeira vez vi o exterior do meu eu. A princípio não sabia quem eram meus pais. Quem foram aqueles que me permitiriam viver. Me presentearam com o melhor presente que todos almejam- ver o nascer do sol. A lua redondinha, parecida a um queijo prato. Maiorzinha que um simples prato onde se usa comer. Uma vaca recém parida escondidinha no mato tentando defender a cria dos olhos gulosos dos predadores. Uma rosa botão virar rosa flor. O entardecer aqui no meu paraíso onde agora me encontro. Assistir ao despertar de um filhote de beija flor no seu voo solo recém saído do ninho. E tantas coisas e loisas que tanto me encantam.
Sou deveras um afortunado, não pela fortuna em bens que amealhei nestes meus mais de setenta anos. E sim pelos pais. Mãe e seu companheiro. Os quais tantas vezes desobedeci e me arrependi depois. Estes mesmos pais tão zelosos de suas crias. Meu irmão Fred, que veio cinco anos depois de mim nascido. E outro irmãozinho, Frederico, que não cheguei a conhecer pois Deus o convocou prematuramente para viver ao seu lado no céu. Não poderia jamais me olvidar da querida Rosinha. Um anjo que penso, depois de tantas vicissitudes e enfermidades passadas, não vai nos deixar órfãos de sua carinha boa e sua memória prodigiosa sabendo, melhor do que nós, citar nominalmente fulano e beltrano. E toda parentada não só os Abreus como da mesma maneira os Rodartes.
Sou em verdade um afortunado por ter herdado o talento de escrever do meu saudoso pai. Pena que a letra bonita de minha mãezinha ela não passou a mim.
Sou um sortudo por ter me formado nessa profissão ao mesmo tempo tão espinhosa e em mão contrária que tanto me gratifica.
Em verdade me sinto tão bem por ter tido pai e mãe. Que são pra mim, e creio que para o meu irmão, exemplos a serem seguidos não somente pela lisura no trato. Como pelas múltiplas qualidades que pessoas que tiveram a felicidade de conhecê-los sempre, ao me reconhecerem nas ruas, não sonegam encômios a ambos.
Me sinto tanto bem. Um amontoado de prazer pela data de amanhã. Quatorze de maio. Dia festivo e de muito significado. Já que quatorze de maio celebra-se o dia delas – mães.
Mas posso dizer, ou deixar escrito, nesse texto de agora de tarde, não na minha oficina de trabalho. E sim nessa sala dotada de uma vista paradisíaca, olhando pela porta ajanelada, um naco grandioso da represa do Funil.
Podem dizer que, a falta de minha mãe, o dia de amanhã não carece de tantas celebrações. A ausência da minha não torna esse mesmo amanhã desprovido tanto de significado ou alegria.
Podem ainda dizer que, se ela estivesse viva, juntinho a mim, quem sabe este amanhã, quatorze de maio, seria aprazivelmente de mais sabor. Verdade irrefutável.
Mas, mesmo não a tendo ao meu lado, naquela mesa faltam eles.
Sou deveras um nascido com a tal coisa de tantos nomes esquisitos, virado pra lua.
Não irei soletrar quais letras formam essa palavra. Entre parêntesis apenas (b u n d a).
Já que não tenho mais minha querida mãezinha Rute ao meu lado direito. Mas poderia ser tanto faz direito ou esquerdo. Já que elazinha cabe mais profundamente no meu âmago ou entre os dois pulmões bem no centro do meu peito.
E pra aqueles, como exemplo merecem menção tantas crianças que desconhecem quem foram seus pais. O dia de amanhã, quatorze de maio, domingo, pra elezinhos todos, o dia das mães não tem o menor significado.
Joãozinho é um garotinho órfão de pai e mãe.
Ele foi adotado oriundo de uma instituição meritória daquela cidadezinha perdida nos cafundós de onde nenhures sabe dizer onde fica.
A tal cidadezinha nem consta no mapa.
E o menino Joãozinho poucos meses ficou na casa onde pais postiços acreditavam que aquele menino, diferente de seus genes, pudesse um dia ser tido como filho de verdade.
Mas tudo não passou de um ledo engano.
O menino levado, enveredou-se pelo mau caminho e se perdeu nas drogas.
Um dia vi-o dormindo na rua. Era uma manhã gelada de inverno. E ainda por cima garoava.
Acheguei-me dele cautelosamente para não acordá-lo. Mas ele já estava. Com um olho entreaberto e o segundo cerrado.
E puxei prosa: “menino. Não tens casa onde morar? Não tens pais? Por acaso aqui é onde moras? Não sentes falta de um lar?”
Foram perguntas tolas. Já o sabia.
Antes de ir embora fiz-lhe uma derradeira pergunta: “não sabes que amanhã é dia das mães”?
“Que mãe? Você por acaso tem uma? Eu não sei quem é a minha. Nem ao menos tenho sobrenome. Podes me chamar de filho das ruas. Ou qual nome lhe aprouver. E olha, o dia de amanhã, pra mim não tem nenhum significado. Tchau”.
É. Sou deveras um afortunado.
Embora, naquela mesa da sala de jantar no domingo, dia delas, seu lugar vai estar vazio.
Minha querida mãe Rute. A senhora pode ter feito uma longa viagem bem no alto. De onde pode estar me vendo nesta hora.
Não posso presenteá-la com um botão de rosa. Nem ao menos com uma rosa inteira.
Mas receba, minha amada mãe Rute, estas lágrimas que, derramadas neste teclado negro, inundam-no com meus sentimentos mais puros que a pureza de seu coraçãozinho que um dia parou definitivamente de pulsar. E eu, médico impotente, de impedir a chegada da morte, a sua despedida assisti. Naquele momento de tanta tristeza. Naquele centro cirúrgico da Santa Casa. Adeus soa muito forte. Melhor dizer até breve. Minha mãe.