Carnaval inolvidável do Doutor CRM Novo

Aquele jovenzinho, formado de pouco, depois de vencer duras etapas em sua vidinha humilde de gente pobre, nascido e, felizmente, emigrado da rocinha prejuizenta dos pais, semi- alfabetizados, um dia viu, naqueles olhinhos sensíveis de onde emergia sensibilidade tamanha, só de ver alguma avezinha despencar do ninho, sem asas preparadas para voar, de sua face tristonha despencavam gotas salinas do canto dos olhos, as quais se nomeavam de lágrimas.

Pode parecer de pouco entendimento o parágrafo acima. Segundo meus honoráveis e letrados revisores, pessoas para as quais tiro o chapéu (nos últimos tempos tenho usado chapéu para tapar a careca do sol), professores Antonio Russi e Luiz Fernando de Oliveira, o escritor que se alonga demasiado nas frases corre o risco de se perder e fazer perder no meio do caminho quem passa os olhos no que ele escreveu.  Mas, como sou cavalo velho não perco o trote. Insisto, persito, e vou amontoando letras ao Deus me acuda.

Voltando ao parágrafo anterior, parece que em verdade deixei a desejar, pois terminei-o de forma abrupta, sem expressar o fim da história, que mal começou a ser inventada.

Acontece que o jovem profissional da medicina, o primeiro na família de gente singela, mãos caludas e afeitas ao trabalho duro, põe duro nisso!, era dotado de uma capacidade de estudo e de inteligência única naquela família pouco erudita.

A etapa do Enem o pegou na lida com as vacas e suas crias. Quando estudava para a prova que o capacitaria à universidade, na idade antes dos dezoito anos, já era mais de sete da manhã, na roça dos seus pais todos tinham o costume de se levantar antes das quatro da madrugada, no inverno um frio polar fazia a todos tiritarem o queixo, dando início à ordenha, a primeira de outras duas irmãs, para tentar tirar da linha da miséria, deixar o pescoço de fora da base da pirâmide humana, que no Brasil varonil, segundo as estatísticas menos de um terço, bem menos, detém nas mãos bem mais da metade da renda da população inteira. São números falhos, pois com eles não sei lidar, ou muito menos me equilibrar.

Naquele dia, quando o nosso jovem doutor, ainda não lhe botei na cacunda magra o nome, bem que poderia ser José, ou Raimundo, Tonho ou Sebastião, fica assim mesmo: Doutor CRM Novo, a melhor vaca do plantel modesto, quase em número de cem, atolou no brejo da esperança morta, e ali mesmo morreu. Foi a primeira e a derradeira notícia péssima do dia, que mal começava a ver o sol raiar, e como fazia calor naquele verão calombento!

A segunda, excelente, nota mil, era que o quase Doutor CRM Novo foi aprovado, com notas altas, no tal exame do Enem, que o capacitaria a cursar medicina numa excelente e insuspeitavelmente boa Faculdade de Medicina Federal. Sem pagar um tostão furado até ter em mãos o tão sonhado diploma, subir ao palco lotado, trêmulo, emocionando a toda a plateia, quando lhe anunciaram o nome singelo, ainda não sei de que nome vou apelidá-lo.

Foi ao mesmo tempo triste e alegre o dia em que o nosso jovenzinho futuro doutor deixou a roça dos pais. Fizeram uma festinha caseira, com doce de goiabada cascão, de leite tirado na véspera, regado com leite mesmo, pois não tinham o hábito de tomar nenhuminha bebida alcoólica.

Nosso personagem central dessa história curta, não é um romance oblongo, nem mesmo um livro de reportagem sobre a vida dos presidiários (como foi o meu Mundo das Sombras), passou os seis longos anos do curso médico atolado nos livros (ele jamais se esqueceu de quando a vaca Braúna, a melhor do curral, morreu atolada no brejo de taboas assassinas, e nada puderam fazer para salvá-la do bico do urubu).

Em um mil, não me lembro bem em quantos o mil se desdobrava, enfim do Doutor CRM Novo se metamorfoseou de estudante de medicina em doutor de verdade.

Mas para ele ser médico simplesmente, dono de um CRM de muitos numerais (o meu é 7711), não era o bastante. Queria por que desejava ser especialista em algum dos setores da medicina hodierna. As suas opções eram muitas: Urologia, Cirurgia Geral, Proctologia, Angiologia (Arqueologia não) não é um capítulo da medicina.

Mas, outro mas, o terceiro mas o pegou de calças curtas na mão.

Imediatamente um dia depois de ter sido feito esculápio, cheio de sonhos e pesadelos, pensando em fazer concurso para se tornar residente de Urologia, era mais difícil ser escolhido, entre mais de cinquenta candidatos a tal especialidade cirúrgica, difícil e complicada estrada, que ser aprovado no vestibular, recebeu, num átimo, a notícia alarmante de que o pai caíra enfermo, era a doença de Alzheimer que o escolheu como vítima, não mais podia enfrentar o turbilhão de intempéries por que passa o produtor de leite.

Seria preciso, a partir de então, pagar a um batalhão de cuidadores para de o seu pai amado cuidar.

Foi esse o motivo e a razão que o esforçado Doutor CRM Novo declinou de ser urologista. E teve de se filiar a um PSF da vida, médicos recém formados, ainda não completamente moldados, que enfrentam, com as poucas armas de que dispõem todas as nuanças da medicina, seja em que matizes de cores aparecerem.

Era carnaval quando foi escalado para o primeiro plantão. Dar plantão, varar a noite no atendimento de urgências, não era da incumbência dos médicos do PSF. Mas, como um colega de turma, daquela turma tão díspare, a maior parte vinda de famílias abastadas (não abestadas), ficou impossibilitado de dar atendimento naquele primeiro dia de carnaval, final de fevereiro, coube ao nosso amiguinho, sem nenhuma experiência em pronto atendimento, neófito no assunto, cobrir-lhe a vaga.

Isso tinha um lado bom. Seria mais uma grana, curta, que lhe entraria no porquinho cofrinho que estava com a barriguinha vazia.

Enfim chegou o tão desesperado dia. Era uma tarde noite de sexta-feira, que precedia a folia.

Doutor CRM Novo chegou, com um jaleco novo, onde se lia : Doutor CRM Novo, duas horas antes do previsto.

Assim que adentrou a tal URPA, sigla maldita, ou bem dita, segundo opiniões divergentes, como estava só, em companhia de um técnico de enfermagem inexperiente, adentrou à sala de emergência um baleado no tórax em estado grave.

A ambulância, que estava com um pneu careca, e outro recém esvaziado, chegou esbaforida com a sirene enguiçada.

A maca que recolheu o pobre desventurado pai de família, que por um azar tamanho estava no lugar certo na hora errada, recebeu um tiro no peito sem nada a ver com a pendenga, acabou quebrando as rodas tortas, logo à entrada da sala de cirurgia (que se alagava todinha quando a chuva vinha de repente).

Mas Doutor CRM Novo tinha de encarar o boi bravo (me perdoem a ousadia da insana comparação).

Mercê da parca experiência como cirurgião, durante o curso deu plantão num hospital do SUS sem nenhuma condição de praticar qualquer intervenção de médio porte, apenas extrair uma unha encravada, ou coisa de menos valia.

Assim que examinou o baleado no tórax, ao comprovar o estado grave em que se encontrava, tentou a transferência imediata para internação num hospital capacitado, que tinha convênio com o Sistema Único de Saúde.

Ao telefone, com a voz rouca de preocupação e emoção, ao ver a vida se esvair rapidamente do corpo inerme daquela inocente vítima da fúria das grandes cidades, foi atendido por enfermeira com sinais de embriaguês recente (deveria ter ido a algum baile pré- carnaval), que, do outro lado da linha, voz empastada pelo álcool, lhe informou, sem saber o que estava falando : “Dotor. Mande o paciente esperar o carnaval passar. Faça o que puder aí mesmo. você não é dotor”?

Nunca seria demais dizer, ou escrever: “o pobre pai de família, cujo único pecadilho foi ter nascido no Brasil, faleceu meia hora depois, nos braços cheios de sonhos perdidos do nosso médico novato, que desejava ser especialista em Urologia, mas teve o sonho postergado para um dia, quando? Não se sabe quando…

O carnaval do Doutor CRM Novo acabou naquele primeiro dia. Melancolicamente, como outros carnavais da sua pobre vida, recheada de sonhos e esperanças insepultas.

 

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