Como o passado, antes do tempo de agora, tem me seduzido tanto.
Não sei quantos anos acumulados, inevitavelmente, simplesmente ao olhar da janela do meu consultório, dando uma vista d’olhos ao lado esquerdo, pela janela que fica quase sempre fechada, dado ao vento que assopra varrendo pra longe as folhas de papel, tomara a inspiração persista e não avoe como as mesmas folhas de papel, dou de olhos abertos na Rua Costa Pereira. Sei que ali não nasci. O fato acontecido se deu na próxima Boa Esperança, no distante ano de 1949.
Meu pai ali trabalhava, e como ele apreciava o que fazia, numa casa bancária de nome do meu país, que atravessa enormes problemas, mas, a exemplo de uma nau à deriva com certeza ele, como ela (a nau), vai saber transformar os vagalhões em marolinhas tranquilas, atracando-se em um porto seguro, tomara esse mesmo futuro não tarde muito. Pois assim, nós, os brasileiros ficaremos sem a devida paciência, qualidade que me atrai, embora não a tenha tanto, e a persiga como a mesma embarcação perdida em alto mar tenta encontrar as areias seguras da praia, em algum lugar perdido na imensidão do oceano.
Mas, foi na aprazível de então Rua Costa Pereira que ensaiei titubeante os primeiros galos na testa não tão ancha como hoje.
Foi naquela casa, a de número 152, agora vazia dos meus pais, que me olha com as janelas cor de tijolo escuro, no meu quartinho onde hoje dorme a querida irmã Rosinha.
Como aquela rua agora está transformada! Não diria transtornada. Caso o dissesse estaria cometendo um perjúrio.
Antes, nos dias quando ali brincava, o calçamento era diferente. As pessoas eram outras. Muitas já não estão entre nós. Não diria que sou o único sobrevivente. Apenas sobrevivo cultuando memórias.
Ainda me lembro à exatidão daquela rua tão cara.
Era calçada de pedras duras. Os tais paralelepípedos. Que ainda, creio eu, debaixo do piso asfáltico ainda se escondem, talvez com falta de ar, as tais lajes de granito, seria essa mesmo a constituição das tais pedras? Se não me corrijam. Não irei ficar como aquele garotinho metido, posto de castigo por não apreciar a reprimenda da professora de aritmética, unicamente por ter se iludido ao somar dois e dois e na soma dar cinco (mais uma inconfidência que inda hoje me acompanha-tenho verdadeira ojeriza aos números, como me assalta uma enorme paixão sem medida pelas letras miúdas).
Não conseguirei, por mais que tente, banir as lembranças daquela rua da minha cabeça que não para de pensar na vida. Seja dos vizinhos antigos, seja dos amigos de infância que ali comigo fizeram de conta que não iríamos crescer, fosse dos antigos moradores daquelas casas todas, a maior parte delas viraram clínicas médicas, onde profissionais que não mais usam branco (substituíram-no por camisas de mangas compridas, calças sociais, tudo encobertado por um jaleco onde fica atestado o nome do doutor, e sua especialidade) , militam e impõem dignidade e ética a essa nobilíssima profissão que tem perdido o respeito, tomara, num tempo não muito longe a gente recupere aquele tão saudoso “obrigado doutor”,” Deus lhe pague” (apesar de o pago não deve ser postergado, pois todo profissional da medicina merece, e como, o recebimento de um salário digno, não tem sido a máxima, pelo menos para os esculápios mais jovens).
Ainda que me fosse permitido antecipar ao tempo, voltar àqueles frondosos e verdes anos, não eram apenas felizes e sem problemas, todos os temos, talvez eu não retornasse à Rua Costa Pereira, no momento em que meus pais não mais estão entre nós. E ficasse, mercê dos anos em que conto agora, já com um netinho lindo a puxar-me a barba de Papai Noel, caso a deixasse crescer, ainda pensando ser menino, falta-me olhar no espelho, feliz morando onde estou, num lindo condomínio, de onde saio sempre a pé, ou em carreiras nos finais de semanas ou feriados.
Ainda que me fosse permitido antecipar ao tempo, voltar a ser criança, não perderia a esperança nos destinos da querida pátria amada, ainda desacreditada no mundo que a cerca.
Se me permitissem antecipar aos dias de agora, voltar numa máquina do tempo, sabendo, com certeza, de que ela não enguiçaria, e comprasse de véspera o bilhete de ida e volta, talvez fosse, numa visita rápida, ao passado que tanto me encanta.
Mas ficar ali, ad eternum, como Peter Pan, uma criança que nunca cresceria, já que tenho a minha fada Sininho por perto, não digam a ninguém que ela se chama Rosa, pra sempre jovem, de pouca estatura, como se eu fosse alto, tenho a altura da envergadura moral que meu pai tinha, a fotografia nossa me fita bem perto, e não me deixa mentir, senão meu nariz cresce, não gostaria que assim acontecesse.
Ainda que me fosse permitido antecipar-me aos anos, não gostaria nunca de ficar sempre andando de patinete, de me equilibrar naquela bicicleta amarela de rodinhas brancas que, quando elas foram retiradas foi como o dia em que meus pais faleceram. Confesso que perdi não apenas o chão, como me deu um aperto enorme no coração, e como chorei…
Caso me fosse permitido antecipar-me aos momentos felizes da minha vida toda, olha que não são poucos anos, são mais de 67, sem ser preciso enumerá-los, pois aqui permaneceria quase uma eternidade contando a vocês minhas travessuras, hoje as tenho também, graças ao bom humor que felizmente me domina, talvez fizesse tudo de novo. Exatamente igual à clara do ovo, que como todos os dias, para me enfarar de proteínas, tão necessárias ao desempenho do atleta o qual penso estar escondido dentro de mm, e não o encontro nunca.
Se, por um acaso, ou descaso, me permitissem antecipar ao tempo, poder abraçar meus pais de novo, nem que seja por um ou cem minutos, por certo o faria, nem que fosse para pedir-lhes perdão, por lhes ter falhado em momentos quando eles mais precisavam e eu não estava presente.
Bem sei que não me vai ser permitido antecipar-me ao tempo. Como idem sei que os anos não voltam. Nem o passado se repete, como sei que um amor perdido, uma palavra mal dita, chicoteia na face de quem a recebeu, num ímpeto de raiva, num momento de fúria.
Por tudo isso, digo e repito, pois quem repete sabe que a repetição nos enseja lembrar-nos de alguma coisa. Fatos esquecidos, desejos não realizados, sonhos não bem esclarecidos, amores ultrapassados…