Quantas e incontáveis vezes ouvi, da boca de alguém, creio foram muitas vezes da boca de meus saudosos pais, tenho certeza que eles dormem com Deus também, pena que seja para sempre, a expressão título do meu texto. Sei que você, vocês, todos, ou quase, já escutaram essa preleção, quase uma pregação, nascida automaticamente à hora de dormir, ou de tentar conciliar o sono, no meu caso tenho sono curto, a exemplo da minha paciência de pavio mais curto ainda, quando vejo, na cidade, principalmente as de grande porte, gente acotovelando-se nos passeios em mal estado de conservação, sem piso apropriado, escorregadio em dias de chuva, ou atapetado de buracos, ameaças à integridade das nossas pernas andejas, pessoas atravancando a passagem dos pedestres, palavra ingrata em nosso país dos corruptos mil.
Hoje, sábado fechando os olhos, tarde noite quente, fiz da cidade uma visão longínqua, quase uma miragem distante.
Como de sempre, quando não estou em viagem a outro país, mais civilizado e de educação mais esmerada, faço um curto deslocamento a dois arrabaldes de Lavras, locais que amo a combustão.
Bem cedo a minha roça, município de Ijaci me espera trazendo pães para tomar café.
Ali passo horas perdidas na salubridade do singelo. Faço de conta que sou dono da terra. Quando, no entanto, ela é a dona de mim.
Pela manhã, depois de ver o quanto as minhas ex- vacas estão felizes nas mãos expertas do novo dono, de dar uma curta cavalgada no meu potrinho recém castrado de nome Theo, de dar uma d `olhos na minha nova morada, por mim vai ser batizada de “Recanto do Escritor”, fui ter a outra propriedade da família, agora em nome dos filhos, uma linda casa avarandada desta vez beirando outra coleção de água doce, represa mais antiga, que oscila entre o secume d` água em tempos de verão, para se revigorar quando a temperatura baixa.
A represa de Camargos tem a água mais limpa. A do Funil, por ser o encontro entre três rios, fica mais barrenta, imprópria a nadar, é mais funda e piscosa, tomara logo os peixes entrem em acordo com quem represou a água de um rio que já foi grande e voltem a brilhar.
A casa de Camargos fica vazia, olhando as águas límpidas a maior parte do ano. Talvez por ser mais distante do meu pouso definitivo, mas já apareci cá correndo um par de vezes, e ainda me sinto capaz de fazer o mesmo.
Hoje, depois de um lauto almoço na casa amarelazul, cenário do romance Madest, aportei com minha pratinha valente na outra casa à beira lago.
Quem me recebeu, sorriso aberto, foi a família hospitaleira do Valdir, o novo caseiro, recém chegado.
Confesso, neste curto espaço de tempo, estou mais e mais feliz com o cenário encontrado.
A grama bem aparada, as flores pedindo água dos céus, a represa de Camargos ameaçando encher-se novamente.
Quem mais me causou satisfação, dado ao sorrisão estampado em branco naquela bocarra sempre com fome, foi o filho mais longevo do Valdir, o garoto Jonatan. Não sei se é assim a grafia exata do seu nome pomposo. Pode ser com aga no meio, depois do t, quem sabe é ele e a certidão de nascimento original.
Já o conhecia de vez anterior. Foi simpatia ida e volta.
De hoje a quatorze dias atrás, depois de comprovar a fidalguia e inteligência nata do jovenzinho escuro, dei-lhe, de presente, embora seu aniversário seja no dia 23 do mês em curso, um exemplar do meu último livro de crônicas, de nome Mugido de Vaca e Cheiro de Curral (o que mais aprecio, não o livro, e sim o mugido de vaca e cheiro de curral).
Com a condição precípua de que ele leia todas as 188 crônicas, e opine sobre a que mais apreciou e o revés.
Passamos a tarde trocamos inconfidências mineiras.
Soube que Jonatan, apelidado Careca, nada tem de calvo o sapequinha, como eu, estuda em Itutinga numa escola linda, logo à saída da cidade, em direção à Carrancas. E que naquele logradouro educacional namora uma coleguinha, da mesma idade, de nome Sofia. E que ela tem a cor de café com leite, um tanto gordinha, como ele. Os beijos trocados não são segredos guardados num pote de mel. Mas são doces como o objeto de devoção das abelhas.
Fomos, na intenção de remendar um pneu de carrinho de mão furado, a sua Itutinga querida. Onde ele conhece, e é reconhecido, por quase a totalidade da população.
Onde nós passávamos o Careca era celebrado como o Sumo Pontífice durante as suas peregrinações.
A prosa boa continuou viagem de volta. Chupamos um picolé no trajeto curto. O do Careca entornou todinho pela janela do carro, não restando unzinho chocolate da capa na boca esfomeada do Jonatan engole tudo.
Agora, passadas as oito horas da noite, quente, abafada, sem sombra de chuva no alto, céu límpido, estrelado, o Careca Jonatan passou por aqui.
Despediu-se de mim, presumivelmente para ver a novela das oito e meia, que não começa antes das nove e meia, com um sonoro e bem retribuído, sem ruído: “Dorme com Deus”.
“Dorme com Deus também”, meu caro mais um amigo Jonatan, vulgo Careca, sem sê-lo…