Não sei bem precisar quando foi, e por que, a mãe beija-flor ali escolheu para fazer seu ninho.
O local foi assaz inusitado. Do lado de dentro da minha casa, numa área coberta, avarandada, protegida do sol ao desvario, da chuva por um toldo amarelecido pelo tempo, cercado de muito verde, numa folha de uma planta ornamental de nome Palmeirinha – ráfia, cientificamente conhecida como Raphis Excelsa.
Quem descobriu tal maternidade passarinha foi minha querida amiga e companheira Ângela, que com a gente está a mais anos que minhas lembranças tacanhas acusam.
A princípio eram apenas dois ovinhos diminutos. Tempos depois, sob a vigilância atenta da Ângela, os dois ovinhos eclodiram. Dali, daquela casinha frágil, qual casca de ovo, nasceram dois filhotinhos de passarinhos, tão pequetitos que à vista desnuda mal se podia vê-los.
Foi quando ela me mostrou o ninho do beija-flor. Era de uma espécie não tão diminuta quando um cisco escondido no olho, ou tão grande quanto um elefante obeso.
Os pais dos dois beijaflorzinhos se revezavam na guarda dos pimpões alados. Não saberia identificar qual o pai qual a progenitora. Eram quase idênticos, pelo menos aos meus olhos não expertos.
A hora das refeições era minuciosamente sagrada. Era quando aparecia um dos dois, presumivelmente a fêmea, com a comidinha mastigada (pera aí, beija-flor não tem dentes), e inseria com seu bico enorme a pasta semi digerida na goela faminta dos dois quase beijaflorzinhos.
Ainda tenho a sequência dessas visitas dos pais beija-flores registrada na memória do meu celular cheio de arquivos mortos, que bem desnudam momentos únicos das minhas lembranças fugidias.
Creio, não sei precisar o tempo, ou quando vai ser, os dois filhotinhos deixarão o ninho, asas prontas a beijaflorarem o mundo, deixando a segurança do ninho onde nasceram, cavidade de pouca profundidade bem presa a uma das folhas da ráfia que fica na varanda do fundo da minha casa.
Sei que em pouco tempo o ato do nascimento dos dois passarinhos vai acabar sendo lembranças apagadas não apenas da minha memória como da querida amiga Ângela.
Aos sessenta e sete anos, completarei mais um em dezembro, dia sete, por mais que tente apagar as lembranças que tanto me são caras por vezes não consigo.
Ontem mesmo, à hora em que deveria estar na cama, como o sono não chegava, não tinha nada a ler, nem a ver na televisão, passei a investigar as fotografias arquivadas na memória exausta do meu i-phone novo.
Era preciso, com premência imediatista, deletar grande parte das fotografias, muitas delas repetidas, pois de quando em vez, ao abrir a pasta das fotos recebia na cara uma mensagem que o i- cloud estava lotado, e precisava adquirir mais memória, seria esse o exato teor da conversa? Para bom entendedor a minha palavra de não experto não bastava.
Para as crianças, que dominam a exatidão a arte dos smart phones, com que facilidade elas manuseiam tais palavras e sabem como transformar a minha incapacidade em lidar com elas em brincadeira delas mesmas.
Comecei a deletar, o meu corretor ortográfico do Word prefere a palavra apagar, as fotografias mais recentes. As fotos dos dois animais de sela com os quais tenho boa convivência, infelizmente não a tenho com alguns animais sem bom humor que adoram escoicear na cidade, foram as primeiras que desapareceram da lista de fotografias inseridas na pasta referente a elas todas.
E eram mais de quatro mil, segundo afirmava quem sabia contar, coisa que até hoje não aprendi.
Continuei a apagar as fotos que julgava de pior qualidade de foco. Como fotógrafo sou um zero a esquerda, isso é, nada de novo.
Depois de mais de uma interminável hora acabei por deletar menos da quarta parte. E precisava apagar mais e mais da metade delas. O antipático senhor i-cloud continuava a exercitar a minha paciência de lua minguante quase cheia.
Foi quando chegou a vez das fotografias mais antigas, embora o fotografado fosse novinho como os filhotes de beija-flores que já avoam sozinhos.
Eram não sei quantas fotografias do meu neto Theo. O recordista, até há pouco tempo, de exposições ali, no meu celular último tipo.
Se dissesse que eram milhares de fotografias não estaria faltando com a verdade. Em verdade era mentira. Mas que eram mais de mil, isso nem o pai do Pinóquio negaria. Caso contrário o narigão cresceria, e ele, o pobre boneco de madeira, feito gente, perderia o direito sagrado de ser considerado humano. E voltaria a ser um reles estrupício, arquivado, como as fotografias de má qualidade, na memória gasta do meu celular de tanto uso.
Fui repassando as fotos do Theo, comigo ou sem migo, pelado e com a mão no bolsinho lindo da roupinha amarela e branca, ou seria branca e amarela? Não consegui apagar nenhuma delas.
Já faz mais de uma semana que não vejo o querido Theo em carne e osso. Apenas dele tenho notícias nos whatsapps da vida.
Não sei quando poderei ver meu neto de novo. Como também não sei quando a mãe beija-flor irá alimentar seus filhos de novo. Imagino que nunca mais. Tomara que o nunca mais não se aplique ao meu caso e do Theo. Que embora não seja meu filhotinho, é mais do que fosse.
Acabei por dormir, pouco, sem conseguir apagar menos do que desejava as fotos no meu celular último tipo.
As fotos do Theo não foram deletadas , nenhuminha delas. Assim como as fotos lembranças do meu passado, que tanto me são caras…
Prefiro pagar ao senhor I – Cloud para que ele melhore a sua memória fraca, pois a minha não tem jeito.