Dormir, dizem ser necessário para repor as energias, descansar do que aconteceu no dia de ontem, fazer a cama se sentir importante, quem dorme ao seu lado, caso você tenha acompanhante, fazê-la sentir-se amada, acarinhada, beijada sofregamente quando a paixão, e por que não o amor que ainda não morreu, ou quando agoniza quase naqueles anos verdes quando o namoro era nada mais, nada menos, que uma coisinha de criança, aquele ficar infanto- juvenil, apenas tendo as mãos como objeto de sexo, quando apenas um amplexo era permitido, no máximo um ósculo garantido caso o comportamento do casal, vigiado de perto por algum parente, era tido como próximo ao ideal.
No meu caso, e de outros vis mortais, o ato de fechar os olhos, acalmar os sentidos, deixar o cérebro em marcha lenta, deixando seus neurônios menos agitados, no meu entender é coisa inexpressiva. Como afirmei antes, numa crônica recente, intitulada “tenho medo da noite”, em verdade ela me causa arrepios.
Da cama onde passo algumas horas apenas de olhos fechados, com o cérebro parcialmente desligado, em stand by, não posso ver as estrelas, considero-as astros infelizes, planetóides sem vida dentro deles, que têm tão somente o privilégio de viver durante a noite e desaparecerem com a luz do dia.
Considero um desperdício ficar tanto tempo sem ver o sol, o movimento das pessoas nos seus ir e vir, os que trabalham no seu metier, o que seria do ser humano sem a peleja dura do dia a dia? Nada, nada a ver.
Meu saudoso pai já dizia, antes do seu falecer: “o ócio é o início do fim”. Por este mesmo motivo tenho tentado adiar, sine die, a aposentadoria total, que no meu concepto trata-se de uma aberração.
Quando mais andado em anos mais e mais me passam pelos pensamentos acordar cada vez mais precocemente. Antes acordava, depois de fingir dormir, beirando às sete da manhã. Em cinco minutos apenas já estava prontinho a enfrentar mais um dia de labuta.
Já hoje, passados os sessenta e sete, ainda vendendo saúde, por quanto tempo mais, pergunto, assim como quanto valeria, em quilogramas, ou gramas, uma quantidade mensurável de saúde? Creio que este valor fictício iria valer mais do que os sonhos pueris de eu menino, quando sonhava apenas ser gente grande, não médico ou engenheiro, ou escritor, só vim a descobrir essa nova vocação anos depois.
Para completar o parágrafo anterior, que ficou meio sem sentido, sem cor, hoje tomei a mim o costume de acordar bem antes das seis da manhã. Minha querida esposa fica incomodada, pensando pra onde vou tão cedo, já que só começo minha página de urologista após as oito da mesma manhã. Mal sabe ela que a inspiração mais longeva acorda junto às galinhas, ao nascer do sol, ao fugir das estrelas que de novo se transmutam em vagalumes estrelinhas.
Quando deixo o portão do condomínio onde moro, na temperatura ideal, hoje, as seis e pouco da manhã fazia dezoito graus Celsius. Depois o clima se transforma, radicalmente. Do frescume anterior faz-se vital usar o ventilador ou o ar condicionado, seu aparentado perto.
Uma vez descendo a rua principal, bem antes dela, já obreiros madrugadores, corredores atletas, como eu, donos de padaria e farmácias, os estabelecimentos mais madrugadores que reconheço, já estão de portas e braços abertos, na sua sina de faturar mais e mais.
Quando já com o tênis na calçada, na iminência de deixar aquela pracinha enjeitada, estacionamento de cães vadios, ou onde as madames deixam seus pets fazerem de latrina aquela grama mal amada, sem a educação de levarem as fezes ensacadas nas sacolinhas próprias ou não, o sol, ainda sonolento, esfrega sua cara amarela, não dá banho nela, e deixa irradiar de lá seus raios que me ofuscam a retina, deixando minha menina dos olhos estupefata de tanta claridade brilhosa.
Bem cedo, antes que as pessoas normais deixem as suas casas, mais uma vez pergunto, sem resposta que me satisfaça, qual seria o limite entre a normalidade e a louquice? A linha que divide uma e outra é tão tênue quanto um fio de cabelo de careca. Ou seria menos?
Como é suntuoso e divino ver a cidade acordar antes que a luz do sol, em intensidade plena, incomode tanto.
Como é prazeroso sentir, cá dentro, todo o estupor do sorriso, derramado em suor, dos corredores madrugadores que ainda não dividem a rua com os carros, por ser ainda bem cedo, antes que estes veículos que me desgostam tanto saiam das garagens poluindo a cidade com seus motores roncadores, com sua fumaça negra, com sua triste sina de manchar o ar puro (quase não se o vê mais), que bom se os carros, a exemplo do que acontece na Noruega, num futuro já presente todos os veículos automotores serão movidos a energia não poluente, danem-se os países produtores de petróleo!
Como é saudável ver a cidade acordar, de uma noite quase perfeita, se é que existe tal coisa, sem a azáfama ensandecida de um burburinho frenético, pessoas agitadas tomando as calçadas, acotovelando-se mais e mais, indo em busca de ganhar a vida, como se ela fosse posta a venda, numa banca de feira livre?
Como me sinto confortável ao ver a cidade acordar, como hoje aconteceu, na quase calmaria que nasceu da noite escura, mesmo sem poder ver, lá em cima, as estrelas piscantes que tanto amo, mesmo não sendo poeta.
Como me faz bem a alma e ao coração, perceber a cidade renascer das cinzas do dia de ontem, com o espírito renovado, antes da confusão caótica das horas de pico, quando os bancos perdulários e as lojas febris tentam nos tentar, enfiar, boca abaixo, oferecendo oportunidades péssimas de ótimos negócios, como se um bom negócio fosse apenas comprar, através de ofertas de descontos nunca antes vistos, em promoções relâmpagos (hoje não tem sinal de chuva no ar), nem ao menos terá.
Como me acalenta o pensamento sentir, mesmo que ilusoriamente, a cidade acordar, em plena madrugada, antes de o sol nascer, sentindo na pele sensível o frescume do ar, lembrem-se de que estamos no verão, e ver a montanha, que se desnuda à minha janela, do sétimo andar, de onde escrevo, ainda sonolenta, espreguiçando-se, sem conseguir se levantar da serra onde nasceu.
São tantos e tamanhos motivos para bem cedo se pôr de pé, vendo a cidade acordar, em horas tempranas, que os convoco a todos, madrugadores ou não, deixem a cama entregue ao seu sono de madeira pura, se não em madeira seja em que material for, passem uma água fria no rosto, melhor ainda um bom banho frio, vistam a roupa dependurada de véspera, no meu caso no braço estático da poltrona branca, para não atrasar a saída, e vejam, com olhos de poeta, mesmo não sendo um, o despertar maravilhoso da sua cidade. Antes, bem antes, que seja tarde demais, para acordar…