Nem ao menos soube o nome dela
Amo as madrugadas. Nelas me encontro. Bem cedo, ainda com o sol tímido despertando do seu manto nuvelesco, deixando a descobertos seus raios amarelo ouro, mal se permitindo ver no horizonte infinito a planura do que é belo, maravilhosa criação de uma criatura que não se permite ver, apenas imaginar como lhe seria a face, se com barbas negras e longas, cabelos compridos, aspecto sério, ou seria risonho?, via de sempre com a mão direita postada no queixo oblongo, cabisbaixo, pensativo, preocupado com os destinos da raça humana, com as pessoas nas quais depositou toda a esperança de um dia vê-las merecedoras do paraíso. E, no entanto, elas não fizeram por onde…
Adoro acordar bem cedo. Seja no verão, estação onde passamos calor, quase impossível ficar na cama por muito tempo, logo ela nos catapulta como o assento do jato que está prestes a cair no chão, evitando assim a morte do piloto, que está bem perto do seu pouso final, mas a família que o espera em terra não faz ideia nem quer ver antecipada a ida ao céu, ou inferno, para muitos infelizes este mesmo inferno é a vida dura que muitos levam. O inferno é aqui mesmo, como bem escreveu Dante Alighieri, em sua Divina Comédia.
Creio, no meu caso, sem falar no descaso, ou seja no ocaso, a melhor hora para encontrar personagens ou temas para as minhas crônicas diárias é, indubitavelmente, quando as ruas estão semi-vazias, poucas pessoas descem ou sobem por elas, na intenção de simplesmente caminhar ou ir ao trabalho, estudar, deixando as pernas fazerem a função de carros, como é bom e saudável caminhar ou correr nas madrugadas plenas!
Hoje assim aconteceu comigo.
Nem bem as seis horas da manhã mostraram-me os ponteiros do relógio que sempre me acompanha, sem ele não sei que horas são, deixei a casa em busca não apenas de exercer minha predestinação de médico urologista, como também a procura da tão ansiada inspiração, sobre qual tema deixar escrito, entre tantas crônicas incisas nos arquivos do meu computador, sobre quem, ou sobre o quê, escrever nesta manhã que agora já está de sol a pino, sala febrilmente iluminada, tenho de fechar em parte as pás da persiana verde que ajuda a tapar a luz do sol, que cada vez mais adentra a minha sala. Não quero nem desejo impedir, pelo menos diminuir a saraivada de raios solares que acabam incomodando as minhas retinas sensíveis, como seu dono, o escritor que mora dentro de mim.
Já perto da saída do condomínio onde me sinto realizado, lugar lindo e rico em verde, cheio de passarinhos canoros ou simplesmente passarinhos, saltitantes e lindos, dei de cara com uma linda moça alta, mochila às costas, morena, cabelos soltos sem artifícios que os façam deixar de balançar ao sabor do vento, andando célere, rua abaixo, sem saber quem era ela, ou para onde iria.
Como de praxe tomei-lhe a dianteira. Foi difícil me equiparar tanto a sua juventude quanto a velocidade que suas pernas de seriema peralta quase avoavam rua abaixo.
Ela, e eu, estávamos usando fones de ouvido. Não saberia, como ainda não sei, que tipo de música a moca alta escutava. A minha era uma seleção de canções sertanejas, entremeadas com Fagner e Roberta Miranda, e de um forrozinho para me incentivar a descida.
A alguns metros adiante, afinal, consegui me comunicar com a garota que descia a rua no mesmo passeio que o meu. Foi quando ela e eu retiramos nossos fones de ouvido.
Soube, dada à pressa que ela andava, que a linda moça morena, nem soube se minha vizinha, ou moradora de outra parte da zona sul da cidade, era estudante da Universidade Federal de Lavras. De que área continuo a ignorar.
Ao olhar em direção a sua mochila, de cor amarronzada, clara, percebi que uma montanha de livros, de pesos consideráveis, ali iam sem se queixarem.
Ela não andava simplesmente. Pela desenvoltura que ela ia mais parecia uma corrida.
Andei ao lado dela uns poucos duzentos metros. Foi quando nossos passeios divergiram.
Fui pelo passeio do lado direito, o que passa ao lado da igreja matriz, em direção ao consultório. E ela pelo do lado oposto, que leva à praça que tanto amo.
Sabia, de antemão, que seu caminho seria muito mais longo. Ela ia até a Ufla, eu até a metade da metade do caminho.
Antes das sete da manhã, bem antes, nos perdemos de vista. Não mais consegui extasiar-me os olhos naquela figura esbelta, longilínea, jovem e linda.
Talvez devido a pressa de nossa descida, em direções dúbias, ainda me lembro do que ela disse, no momento que retirou dos ouvidos os fones: “amo andar de madrugada. Adoro caminhar açodadamente. O senhor vai trabalhar”?
A minha resposta foi num átimo: “o trabalho começa a partir das oito. Antes vou escrever”.
Acontece que, naquela saída precoce do achego do lar, não tinha sobre o quê ou em quem me inspirar.
Graças à madrugada cedo, graças à descida pela rua nesta manhã quando agora o sol brilha forte, a inspiração bateu com profundidade de uma faca ensartada no peito.
Aquela moça linda, esguia, que adorava, como eu, as madrugadas frescas, foi o ponto de partida e o de chegada ao fim dessa crônica que acabar de falecer, ou de simplesmente viver, a aos olhos de quem aprecia ler.
E nem ao menos lhe perguntei o nome…
Mas, com a permissão da linda moça, morena, esguia, de extremada beleza doce, a nomeio de Seriema Esguia da Madrugada de Hoje Cedo.