Quando chove em demasia transborda o rio. Quando a escassez de ideias persiste seca-me não apenas a inspiração para escrever, como os riachos mostram os leitos ressequidos, sobrevém a mortandade de peixes, os ribeirinhos sofrem com a estiagem, o gado padece com a falta de comida, o homem do campo reza contrito para que a chuva não tarde a chegar, para de novo ver o verde reviver, as águas de novo rolarem, a vegetação mostrar a cara sorridente, tudo, quase tudo, depende das águas de março que marcam o fim do verão, o outono em seu começo, o inverno entrar, para, afinal o ciclo se completar, ao se notarem as fores despertando de novo, bendita primavera das nossas vidas, a mais linda estação do ano.
Quem ainda não se viu num momento cheio de ansiedade manifesta nos mínimos detalhes?
Quem ainda não percebeu que está prestes a explodir? Quem ainda não se viu, frente ao espelho que não mente, quantos anos a vida lhe presenteou naquela data tão importante, que marca o dia quando nasceu? Quem ainda não conseguiu voltar os olhos desconsolados, num momento de infelicidade explícita, ao se ver desempregado, mendigando migalhas, sendo obrigado a esmolar num ponto ermo da cidade, quando na sua casa alugada a família não tem o que comer, as contas empilhadas por cima do tampo da mesa, a espera que a situação melhore, e esse dia tão sonhado não vem?
Agora mesmo, ao digitar este texto, ainda em seu começo, as teclas brancas do meu teclado negro fizeram greve, paralisando-se, não mais obedecendo ao tiquetaquear furibundo dos meus dez dedos usados na digitação dessa crônica que nasceu sem mais ou menos. E tive de usar os conhecimentos de informática que não dispunha no momento, manter a calma, salvar o início do escrito, contar até mil, ir lá fora, andar um pouco, para, depois de alguns minutos, que quase foram a gota d’água para atirar o computador todo pela janela do sétimo andar de onde escrevo, e ver, cá do alto, a tal peça fundamental virar caco no pretume gasto do asfalto que daqui se permite ver.
São tantas e tantas gotas d’águas por que a gente passa, que, se fosse enumerá-las todas, não daria conta de dizer quantas foram, pois são incontáveis tantas que os números seriam infinitos, na infinitude imensa que minha mente palpita. Dentro da minha hiperatividade própria dos escrevinhadores furibundos.
Desde há tempos tenho ao meu lado, por sobre a mesa ancha onde atendo, eu de um lado, os pacientes do outro, um enfeite que trouxe de uma viagem ao exterior, acredito ter sido da linda e fria São Francisco, norte do estado da Califórnia. Trata-se de um elefantinho verde, com a tromba empinada, sorriso inexpressivo, patinhas, uma delas levantada, as outras três firmemente apoiadas para não deixar cair o adereço enfeite de louça pintada em verde, o qual, como se fosse um vaso, há anos junto ao meu lado, cada vez mais cresce uma moitinha de bambu, cujas raízes vivas ameaçam sair de dentro do oco do elefantinho, caules atados por um laço de fita amarelo desde quando o comprei num bairro chinês, os amarelos asiáticos são especialistas em coisas desse tipo, as folhas verdes do pequeno bambuzal caminham quase ao teto, um dia irão alcançá-lo, já eu, com minha louquice insana tomara consiga ir também ao lugar mais alto do pódio, reconhecido como escritor fecundo, quem sabe sócio de alguma academia importante, uma ABL onde vicejam imortais, embora a maior parte já partiu, deixando uma lacuna de quando em vez preenchida por outros escritores reais, quiçá um dia seria eu? Sonhos, nada mais…
Voltando ao enfeite do vaso do elefantinho verde, que serve de vasilhame para a moita de bambuzinhos, obra e arte de chineses, alguém me disse que tal coisa traz boa sorte, tomara, bem que estou precisando, sempre que aqui chego, antes dos colegas de boa vizinhança, são mais três no meu andar, sei que ele precisa de pequenas quantidades de água para sobreviver. Pois aquela moita de bambu é um ser vivo, não puramente ornamental, como certas plantas que perfeitamente simulam coisas reais.
O vaso, com a cara e o jeito de elefantinho verde, onde fica o pezinho de bambu verdinho, repousa sobre o tampo da mesa larga onde os pacientes, do outro lado se queixam não apenas das suas doenças orgânicas, da alçada da Urologia, como das necessidades da alma, que hodiernamente abundam nos consultórios médicos, que cada vez mais carecem de entender mais do ser humano como um todo do que dissecá-los em partes mais e mais restritas de nós mesmos.
Todos os dias, usando um copo com metade da água da torneira, não quente ao exagero, não fria ao destempero, insiro o líquido transparente dentro da cavidade do abdome do elefantinho. Onde se alimenta de água a moitinha de bambu feita com todo capricho por algum chinês de face amarela e olhinhos puxados.
Tomo cuidado para a água não extravasar de dentro do pratinho de plástico que recolhe o excesso de água e acabar manchando o tampo de madeira da mesa onde o elefantinho mora.
Nem sempre consigo tal feito. Não dá para perceber o quanto de água contém o vaso que mantém a moita de bambuzinho viva.
Hoje, ao chegar ao meu consultório, antes das sete da manhã, nesta linda manhã de verão, quente, agora o sol teima em adentrar pelos liames da persiana verde esmaecida que tenta empanar o brilho do sol, quase conseguindo, ao derramar meio copo de água dentro da barriga do vaso sob a forma de elefante, a água acabou entornando sobre a mesa de madeira marrom onde se debruçam os pacientes.
Foi um pingo só. Uma gota d’água que vazou de dentro do pires pratinho de plástico usado para impedir que alguma gota d’água manche o tampo da mesa.
Foi quando voltei os olhos e os pensamentos às pequenas gotas de água que nos fazem perder a paciência e o tirocínio, nas desventuras do desassossego dos dias de aflição por que passamos, em nosso cotidiano que por vezes nos martirizam tanto.
A gota d’água derramada do vaso do elefantinho hoje manchou um cadinho o tampo da mesa marrom onde passo horas perdidas dos meus dias de médico escritor.
Tomara as demais gotas d’águas dos outros dias não façam transbordar o resto de paciência, tão vital e importante, para que os nossos dias não nos façam sofrer tanto…