Quem já não passou por isso: num dia escuro, quase noite, andando sem ter aonde ir, numa roça estranha, caçando vagalumes em busca da criança que já não mora dentro da gente, a fim de aprisioná-los numa caixinha de fósforo, depois soltá-los após chegar a casa avarandada, abrir o tampo da tal caixinha de madeira reciclada, que tanto pode guardar segredos quanto expô-los a verdade, coisa de criança, fez parte da minha e da sua infância, não teve mocidade, passou incólume pela ingenuidade, fez-se adulto, doutor, funcionário público, ou profissão de mesmo valor, e não viveu. Pode pensar que assim foi que aconteceu. Mas, ledo engano. As crianças de hoje perderam o tempo bom que nos acenou pelas costas, foram ensinadas, pelos mesmos adultos que perderam a infância, que as brincadeiras hodiernas são jogar vídeo game, procurar o tal de Wally, personagem escondido dentro dos smartphones, esquecendo-se do pique – esconde, do jogo de finca ou do bete, deixando a linda bicicletinha de rodinhas tortas (ficaram assim por um tombo que um dia levou o garoto que sou eu, mas logo foi curado por uma bolsa de gelo encostado de leve na testa pelas mãos experientes da mãezinha que se foi, de repente, e não deixou nada de herança material, a não ser o amor maternal, coisa que ninguém tira da gente, mesmo que consiga o segredo do cofre forte aferrolhado a um cadeado falso, cujo mistério até hoje está envolto numa névoa densa que jamais se dissipou). Felizmente.
Hoje aconteceu-me um fato estranho.
Estava na roça no município de Ijaci. Hábito que cultuo, da mesma forma que de vez em quando passo na igreja principal, oro um cadinho, agradeço tantas e tantas bênçãos conquistadas, imploro pela saúde própria e dos que me são caros, por todos enfermos dos quais não consigo sanar as dores, e saio de lá mais puro, cheio de vontade de ajudar. Pena, mercê de uma saúde pública enferma, pouco posso fazer pelos que sofrem tanto, tempos perdidos à espera de operações mais e mais sem dias certos, pois as verbas do SUS são cada vez mais exíguas, e não dão conta de devolver a saúde aos outros, justamente os humílimos e desprovidos de recursos, quem pode mais consegue benefícios dignos de primeiro mundo. E quem amarga nas filas nem de longe são vagabundos.
Quando, naquela rocinha que tanto amo, ainda mais agora que não mais sou o responsável pela renda do leite, após ter aprendido, a duras penas, que leite só dá lucro em larga escala, que boi só engorda aos olhos do dono atento, que vive lá, não faz de conta que é fazendeiro, agora que passei a administração e as vacas, que não mais são minhas, a um amigo de mãos caludas, assim que lá ponho os pés, tomo meu café com pão e ovo caipira, junto à família do meu amigo, busco meus dois cavalos de sela no pasto longe, perto de minha nova casa à beira da represa do funil, antes da volta com os dois equinos presos pelo cabresto, vi, creio não ter sido imaginação, um vulto de mulher, estática, como um mourão de cerca, na divisa de pastos com o outro mais encima.
Como estava com as mãos ocupadas, puxando duas rédeas curtas, os dois cavalos queriam escapulir rumo à matinha onde os apanhei, escondidos à sombra fresca, acabei parando perto do tal vulto de mulher o qual confundi com um mourão.
Deixei os animais atados pelo cabresto num tronco de amoreira idosa. Acreditei, não questionei a tal árvore centenária se por acaso ela deixaria escapulir meus queridos animais, mãe e filho: Cigana, uma égua pampa branca e castanha, e o potro recém castrado de nome Theo, e fui ver de perto quem ou o quê seria o vulto de mulher, em muito semelhante a um tronco mourão de amoreira, árvore de puro cerne, só encontrada em ferras férteis, como meu palmo de chão.
Fui pé- ante- pé. Tentei não fazer rebuliço. Temia espantar aquilo, meio mulher, meio mourão.
Assim que cheguei a uns bem medidos cinquenta metros, parei novamente. Não por receio, não era tão tarde, nem muito cedo. Pelo relógio que trazia no pulso, os ponteiros mostravam sete e meia da noite. Uma noite clara, quase ficando negra.
Foi quando pensei, como não tinha lanterna, apenas uma nesginha de claridade de uma quase noite escura, em apanhar entre os dedos alguns vagalumes errantes. Não é que um bando de danadinhos me descobriu? Ou fui eu que os achei?
Sem caixinha de fósforo, não fumo, nem sei tragar, não pude prendê-los no tal caixotinho fracote. Foi quando me veio à cabeça uma ideia estapafúrdia. Como estava de boné branquinho, semi novo, depois de pegar os três enormes pirilampos com as suas lanternas no rabo que faz tique- taque, foi no oco do boné onde tranquei, com muito cuidado, os três irmãos vagalumes noctívagos.
Foi com eles três iluminando o caminho, que descobri, afinal, o que seria aquele mourão de amoreira muito semelhante a uma figura de mulher.
A um palmo de distância, sentindo-me seguro, sob a proteção iluminada dos vagalumes, atinei o que ou quem pudesse ser aquilo.
Era um reles e vetusto mourão de cerca. Só que, como a árvore de onde saiu o mourão era uma amoreira, que amava outra amoreira, quase igual, e ela foi devastada por um incêndio recente, ali ficou, a escorar uma tronqueira, um toco de pau duro, igualzinho a uma fêmea.
Dizem por lá, gente que acredita em assombração, em mula sem cabeça (talvez eu mesmo seja um descabeçado), que o tal mourão, que se assemelha a uma mulher, linda, de seios concupiscentes e maduros, com um traseiro de fazer inveja à capa da revista Sexy, em noites de lua cheia ela anda por lá. E acaba seduzindo quem, como eu, se acha perdido por aquele caminho, que não conduz a nada, a nenhum lugar…