A moça que engolia sapo e digeria tartaruga

Quando digo, depois de correr na academia, ou pelas estradas asfaltentas perto da minha cidade, que corro como tartaruga manca, e nado como lontra faminta, quem reconhece meus dotes de atleta bem sabe o que quero dizer.

Nas estradas, em longos percursos, corro como baiano em dia de preguiça. Ou tomando como exemplo uma tartaruga manca, devagar e sempre, na velocidade na qual me sinto confortável, a mais ou menos oito quilômetros a hora, tanto na planura do infinito, seja nas subidas sem fim, com o mesmo fôlego inicial, cruzando a linha de chegada bem atrás dos vencedores, mas, caso me fosse permitido voltar correndo eu o faria, sem ser preciso de carro de resgate.

Já na piscina, ali, no LTC, quando entro na água azulada, na temperatura ideal, não quente ao exagero, não fria ao extremo, não tenho encontrado competidores à altura, quando a distância é curta, apenas vinte e cinco metros de lonjura, bato em velocidade nadadores top dez, daquele lindo clube, da minha idade, quase comigo foi edificado, naquele longínquo um mil novecentos e quarenta e nove, mês de dezembro.

Já disseram, as boas línguas, que na água sou como lontra faminta, prestes a abocanhar um peixão, um jaú, ou dourado, um piau saboroso como a comidinha que minha avozinha fazia, naquela casa alta, a qual desmanchei depois que eles, meu avô Rodartino e a querida vó Belica, viraram estrelas brilhantes vistas pelos meus olhos sonhadores de poeta que não me considero, pois sou apenas um cronista que escreve tanto, com tanto encanto, que eu mesmo me deslumbro com as linhas todas saídas das páginas inspiradas nascidas do teclado negro do meu computador que sofre de tanto sentir a agilidade dos meus dez dedos agitados, que nunca param de nele digitar.

Já a personagem dessa crônica que inda agora saboreio, hoje foi dia de aula de alemão, já passa das nove da manhã, dessa quinta-feira maravilhosa, sol a plenos pulmões, é meu braço direito, esquerdo, os dois juntinhos, desde que sua irmã faleceu numa tragédia ainda não esquecida, quando ela e seu noivo, um gaúcho de nome Cristiano, a Dóia e ele se completavam, um era o outro, o outro era o um.

A gentil e tímida Rosângela, Zaninha, para os íntimos, tem, e quem nãos os têm?, alguns defeitinhos que mesmo os anjos e querubins mostram em suas asinhas brancas e imaculadas.

Ela não gosta de falar não às pessoas que me procuram no consultório onde ela faz tudo: desde  a faxina, que mania de limpeza tem a Zaninha, a confecção das fichas dos pacientes, a esterilização perfeita do instrumental cirúrgico, até na alimentação e higienização do aquário de água doce que me contempla do meu lado direito, acredito até que ela dá banho nos peixes com água e sabão, isso sem contar com a pontualidade e assiduidade com que ela, zelosa enfermeira, dedica a mim desde que substituiu a irmã anos atrás.

Zaninha não consegue, por mais que a peça, impedir que pessoas desavisadas, pacientes meus dos postos de saúde onde ainda milito de coração a larga, entrem porta adentro, que sempre fica aberta, tal e qual a da igreja por onde passo todas as manhãs, e, dada à timidez, e a incapacidade de zelar pela segurança da minha oficina de trabalho, nunca seria demais ilustrar a falta de educação de certas pessoas, elas foram criadas sem freios ou bridões, que teimam em falar com o médico sem agenda prévia, e, quando menos espero, nos momentos ricos em inspiração, sou interrompido de calça na mão por aqueles cidadãos oportunistas e inoportunos, gente da prateleira ao rés do chão.

Hoje mesmo, depois da aula de alemão, de me despedir do professor, personagem principal do meu romance – “Por quem os sinos não dobram”, que retrata a vida de um jogador de futebol que passou longos seis anos em terras européias, e recém retornou à terra brasilis fluente em seis idiomas, por isso se tornou, além de amigo, confidente, pessoa ética, pai de família exemplo, esforçado no que faz, e bem, ao me despedir do Lyon, ao passar perto da Zaninha, na ante-sala que precede a minha, percebi, empilhadas à mesa de tampo de mármore algumas contas de luz.

Num átimo passei uma vista d’olhos nelas. Uma era de fato minha. A outra, de preço mais alto, era de outra sala vizinha. De um colega dermatologista que ocupa outro espaço do andar de baixo, onde antes funcionava a querida Urolito, uma clínica, posse minha, que costumava fragmentar pedras nos rins, de vez em quando falhava quando a pedra era por demais dura, e não dava certo o dito : “água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura” (ou seria tanto bate até que quebra)?

De imediato fiz ver à querida Zaninha que a conta não era minha. Ao que ela, diligentemente, entregou a conta salgada a quem de direito.

Por todas as qualidades e defeitos, da amiga enfermeira, quase perfeita no seu metier, ao me lembrar das minhas atuações no atletismo, tanto na água quanto na terra, acabei por epitetar a Rosângela, Zaninha para os chegados, de : “A moça que engolia sapo e digeria tartaruga”.

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