A corredora da madrugada que borboleteou

Amo as madrugadas! Como disse antes tenho receio da noite. A escuridão me incomoda. A cama, mesmo bem acompanhado, me despeja bem cedo. A idade em que me encontro agora, prestes a caminhar a passos rápidos a caminho de mais uma década, já que os sessenta e sete não mais pesam sobre minhas pernas fortes, que dobram distâncias enormes, pretendo sair desta vida da forma mais lúdica possível: ser atropelado por um auto em movimento, correndo na contramão da vida, nossas estradas perto do meu município não contam com acostamentos dignos, caso um destes carros velozes me colherem de frente aí, neste exato minuto, só me restará fechar os olhos, me preparar para a outra existência, e ser enterrado num domingo, dia que não vai atrapalhar a ninguém que participar das minhas exéquias, todos poderão perfeitamente acompanhar o cortejo fúnebre se desdobrando entre as alças doiradas do caixãozinho branco, não quero ataúde de luxo, e sim um simplesinho, enfeitado de petúnias azuis, cheio de azaléias floridas, por favor, evitem espalhar sobre o meu túmulo aquelas flores de defunto de cheiro relacionado à morte, ou coroas com ditos mentirosos: “Ele fará falta no mundo dos seres vivos”, nada mais cafona estes dizeres, prefiro, por sobre o meu jazigo uma, ou várias, frases poéticas de Mario Quintana: “A amizade é um amor que nunca morre. Tão bom morrer de amor e continuar vivendo. A saudade é o que faz as coisas pararem no tempo. Se eu acredito em Deus? Mas que valor poderia ter minha resposta, afirmativa ou não? O que importa é saber se Deus acredita em mim”?

Ainda sobre o tema correr, ou caminhar mais rápido do que fazem os outros, com os quais nos cruzamos nas ruas, aqui deixo as minhas impressões sobre o fato de acordar antes do padeiro, ou do retireiro madrugador. Com o mesmo prazer que sou capaz de manter-me aceso sobre as madrugadas frescas, sobremodo estas que acordam no verão, fevereiro em seu começo, mais tarde o sol se levanta, acorda despejando por sobre a terra seus raios quentes e amarelos, despejando sobre o frescume das manhãs bem cedo sua língua caliente, tornando o ar mais tardio impossível de caminhar sob a luz solar sem a proteção de um chapéu, ou um pobre boné brancamente imaculado, como o que lanço mão nas minhas andanças pela cidade, nada como acordar com a luz tênue das madrugadas, quase escuridão, com a lua ainda sendo levada ao seu bercinho de astro sem luz própria; ela depende da luz do sol para ser vista pelos apaixonados, ai dela não fossem os enamorados, que se inspiram em sua face visível a olho nu, que bom dormir a pêlo desnudo, sem nada a nos incomodar a não ser a parceira que não aprecia roupa a cobrir-lhe a nudez, os dois amantes tem a cópula favorecida por nada a se interpor entre eles, a não ser o desejo esquecido, a paixão mal resolvida, a sanha por sexo estar em contínuo feriado, não mais ser viável amar e ser desejado. Aí, nestes casos melhor uma separação definitiva de corpos, cada um pro seu lado, melhor que dormir em quartos separados, acabar de vez com aquela união de fachada, apenas para inglês ver.

Hoje acordei mais cedo que o saudável costume. Dormi confortavelmente depois de escutar da boca da minha adorável esposa que, dado ao meu gênio de cão, a nossa família, tão pequena quanto um grão de feijão de porte mediano, estava se desmantelando cada vez mais, por motivos que, creio, piamente, não fui eu o responsável.

Tomei a rua antes que os guardas do condomínio sofressem a troca de turno, cumprimentei quem estava na portaria com a afabilidade de sempre. Eram madrugadores como eu.

Uma vez descendo rápido, pelo lado direito do passeio, dei de cara com uma linda senhorita correndo de cima abaixo, nem deu tempo de perguntar a ela quantos quilômetros ela havia percorrido, na sua carreira que por certo teria começado bem antes da minha saída pelo portão de onde moro.

Estava de ouvidos tapados ouvindo meu fone de ouvido, por onde entrava uma linda canção pela voz suave de Roberta Miranda.

Fiz a moça corredora um sinal de incentivo para que ela continuasse a sua corrida sem se desgastar demasiado. Ela retribuiu ao meu aceno de dedo sorrindo.

Depois desse momento cedo perdi a jovem de vista. Só mais abaixo, longe do nosso encontro, quase chegando a onde estou, no meu consultório médico, local no qual o escritor reparte suas múltiplas militâncias tantas, avistei, à porta do meu prédio, o Edifício das Clínicas, uma linda borboleta multicor. As asas eram de duas ou três cores: amarelas, azuis, e um naco de branco nas bordas lindas das suas asas.

O corpo da borboletinha era tal e qual aquele da garota que havia visto momentos antes. Cheia de vontade de voar, ou de correr, ou apenas de pousar em alguma flor que por ali não existia. Quis ajudá-la a encontrar a tal flor, seu aeroporto, seu salvo conduto a viver novamente, dar-lhe um alento novo para que a linda mariposa se metamorfoseasse em outra linda avoante, para de novo correr longas distâncias, rumo a novas paragens erráticas, pena que as borboletas vivem tão pouco!

No meio do dia, sol a pino, quente, diferentemente das madrugadas frescas, ao deixar o consultório rumo a outro atendimento, num posto de saúde do centro, de novo percebi, pousada no meio fio, de um passeio onde o mato vicejava com suas cores verde-mata, tudo estava verde ao derredor, dei de olhos na mesma borboleta corredora, quase igual à mocinha que corria na madrugada do dia de hoje.

Ela acenou-me com as antenas. Fez sinal que me amava, ou melhor, amou-me a atitude que brotou das minhas mãos, ao ajudá-la a se metamorfosear em uma nova borboleta, que amava correr, como eu adoro assim proceder, exatamente ao seu modo, deixando o carro na garagem, fazendo das pernas asas, com as quais pretendo voar, um dia, quiçá?…

Quem sabe, nem ao menos eu imagino ser possível, poderia me transmutar num borboleto macho, para com aquela moça borboleta que ama correr, como eu, de asas multicores, criar família, com uma simples condição, tenho dito: que a nossa vida em conjunto não seja tão breve como as chuvas de verão. E que seja eterna, enquanto dure a nossa paixão…

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