Aqui, melhor lá, encontro a paz que tanto procuro

Viver não tem sido fácil hodiernamente. Nos tempos de agora só se fala em crise, desentendimentos, desemprego, correria, desamor, falta total de bom humor. Pessoas se trancam nelas mesmas, não fazem questão de procurar a chave, e, se a encontram não acham o lugar de inseri-la, guardam sorrisos não por serem banguelas, e sim por terem receio de despejar bons dias a desconhecidos com quem se cruzam nas ruas.  Quando se pede alguma informação, um nome de rua, um endereço, onde fica a casa de João, se não for João que seja Maria, devido talvez à pressa, ao medo de ser assaltado, o inquirido foge do tal pobre perdido naquela cidade que não é a sua como se escapa das contas tantas que nos afligem no dia a dia.

Não sei se esse fato acontece com algum dos meus leitores: o trânsito, então, quem tem a infelicidade de se locomover de carro, mesmo que o objetivo da procura esteja a simples alguns metros apenas – uma padaria localizada logo na esquina, ou a farmácia para comprar um Sonrisal (adoro o sabor ácido do tal comprimido que se torna dissoluto deixando na água do copo borbulhas cristalinas), aí, quando o assunto é o tráfego, quantas desavenças ocorrem no ir e vir nas cidades, neste calor de verão, podendo do simples ato de ultrapassar um motorista apressado, quantos e quantos palavrões e descalabros são ouvidos oriundos das janelas dos autos, que podem redundar em mortes e coisas equivalentes.

Desse mal não vou me irritar. Se ando de carro, coisa rara de se notar, é quando a distância a ser percorrida é mais de cinquenta quilômetros, pois o objetivo do meu próximo desafio, se Papai do Céu me ajudar, vai ser correr mais do que isso, bem mais.

Deixando os atropelos da vida correndo devagar, ainda bem que ontem foi sexta-feira, véspera de sábado, vesperata de domingo. Sei que logo a segunda se assegunda, depois caminha a terça, a quarta, a quinta, de novo aparece, sorridente, a tão ansiada sexta, para logo o novo mês terminar.

Cheguei inda pouco de um lugar, se não o melhor da terra, chega perto. Podem pensar que seja alguma ilha paradisíaca do Caribe, algumas Seychelles, ou Aruba, ou o lindo Havaí do Hula Hula. Mas não é. Ledo engano o vosso.

Este sítio, bem modesto, enfeitado, como um presépio natalino, de vaquinhas mansas, um cavalinho capado, sua mãe égua que em breve vai me dar mais um netinho, um boi chifrudo, galinhas aos montes, caipiras, galinhas d’ angolas, seriemas e saracuras, maritacas verde- mata (eita bichos mal vistos e mal quistos nos ares da roça, elas nada acrescentam à paz que se encontra por lá: além de desencapar fios de luz descobertos na laje modesta, provocando apagões mais que a Cemig, elas deixam a marca de suas cacas na minha pratinha valente, como apelidei minha caminhoneta Estrada cor de prata).

Sempre aporto por lá por volta da volta das antes das sete da manhã.

Levo daqui o pãozinho francês, iguaria rara nos ares das pequenas propriedades. Assim que o jovem que arrendou meu pedaço de céu quase pronto termina a ordenha, ele acorda mais cedo que eu, peço emprestado à galinha caipira um ovo recém saído da maternidade do fiofó quentinho, abro o pãozinho ao meio, e ali dentro insiro o ovo frito, tomo um café passado na hora, além da prosa boa, sem afetação, sem ser preciso gastar meu bom Francês, ou meu melhor Inglês, até mesmo o Alemão que arranho cada vez melhor, ou o legítimo Italiano ou o Espanhol trazido das terras de Espanha, onde morei um ano inteirinho, antes de bater os fundilhos em definitivo por aqui.

Só depois de enganar o estômago sem fundo vou ver como andam as vacas que já foram minhas, hoje passadas adiante ao arrendador do meu pedacinho de sonho que nunca termina nunca. De cabresto em punho, com uma tampa de lata cheia de ração para cavalo, subo rápido o morro topetudo, indo atrás dos meus puros sangues de mentira. A mãe do Theo (a égua Cigana) prontamente oferece o pescoço, depois de se fartar na ração guardada no latão de leite esquecido na tulha morada de ratos e morcegos negros como a alma de certas pessoas da cidade. Desço cabresteando a mãe pampa até onde ficam esquecidas as selas recém compradas na cidade onde moro.

Hoje foi a vez de montar o Theo. Na próxima será a vez da Cigana, que está prenha de um lindo garanhão negro (posso chamá-lo assim pois na roça não se comete crime de racismo).

Preto é preto, branco é igual.

Fazendo outro parêntesis, gostaria de deixar gravado neste texto o discernimento que faço entre injuriar, ofender alguém por chamar este alguém de vaca, ou ruminante, ou da raça bovina, para bons entendedores meia palavra chega. Vaca é um animal sagrado na distante Índia. Animal quadrúpede, de tetas grandes ou pequenas, de vocação leiteira ou não, venerado e idolatrado, que anda pelas ruas sem ser molestado, nem sei se lá, caso um sujeito, indiano de nascimento, chamar alguém de vaca pode sofrer processo por difamação ou bullying, ou equivalente questão.

Voltando ás vacas frias, quase impossível uma vaca ser chamada de frígida, depois de encilhar o Theo fui com ele fazer umas visitas. Fui até a roça do Geraldo da Dona Nega, que ama as vacas e nem tanto os animais que as possuem. Ali o bom Roberto e seu filho Carlinhos, o herói do romance Madest, se preparavam para encher o trator robusto de pés de milho verdinhos, que sobraram da roça do Geraldo.

Deixei o Theo, recém castrado, descansando suas energias à sombra de uma mangueira. E logo partimos de volta a minha rocinha, antes prejuizenta.

À beira da represa do Funil, lançando olhos melosos naquelas águas plácidas e barrentas, elas são derivadas da união entre três rios, o Grande, o Capivari, e o das Mortes, está ficando magnífica minha casa de campo. São dois andares, dois quartos na parte de cima, um banho solitário, uma sala-biblioteca, onde escreverei até os meus últimos dias, que eles tardem mais que o infinito, e uma cozinha de porte mediano. Na parte do andar térreo, não tem elevador, lógico, situa-se uma suíte, simplesinha, uma área gourmet, uma garage de barco, vou comprar um bote inflável bem baratinho, e um quiosque onde, quem se atrever ali passar a noite junto a mim, poderá caçar vagalumes noctívagos, aprisioná-los em caixinhas de fósforo, e depois soltá-los vivinhos para que eles virem estrelinhas a iluminar a via láctea, fazendo de conta de que são mais um planetinha minúsculo, com seu pisca- pisca ligado a tomada duzentos e vinte.

Depois de comer goiaba na goiabeira, ainda a bordo do Theo, já com saudade da mãe pampa, soltei-o depois de um bom banho com carrapaticida poderoso, para despejar do seu dorso forte os sanguessugas da roça (na cidade eles existem aos montes).

Almocei por ali mesmo. Que delícia o frango caipira que a Bela, esposa do Élcio, o pedreiro que vai acabando de construir meu castelo de sonhos, depenou e esquartejou, e que dona Lúcia, a esposa do Roberto cozinhou naquele fogão a lenha de tantas histórias para contar, naquele seu rabo vermelho.

Dentro de mais ou menos quatro míseros meses o Élcio prometeu me entregar a casa com a chave na porta. Pintadinha com as cores do arco da velha. Com janelinhas azuis, uma varanda suspensa que me permitira sonhar que sou feliz, e muito, na singeleza do singelo, naquele lugar onde a paz fica fácil de encontrar, o que, infelizmente, fica cada vez mais impossível do lado de cá…

 

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