Desidérios de uma manhã bem cedo

Desde quando aprendi o significado da palavra desidério, ou pelo menos quem foi precursor destas letras unidas uma a uma, sabedor que foi um duque da Toscana de nome escrito na mesma grafia, vindo a ser alcunhado de Didier da Ístria (710 a 786) tendo sido o último rei Lombardo, que reinou desde 756 até 774 quando o reino foi conquistado por Carlos Magno, rei dos Francos. Desidério foi derrotado, depois de lutar contra o papa, perdoem-me por ignorar-lhe o nome, pontífice este que apoiava os duques de Espoleto e Benevento contra a sua tirania e poder de conquista.

Desidério entrou em Roma em 772, sendo o primeiro lombardo a fazê-lo, quando foi derrotado em Susa e sitiado em Pávia. Rendeu-se em 774 e Carlos Magno tomou o nome de Rei dos Lombardos.

Desidério, segundo me afiança o Google, quer dizer intuito, vontade, desejo. Três palavrinhas de vital importância a quem deseja se impor, chegar a algum lugar, ir adiante num sonho sonhado, correr atrás, mesmo sem velocidade, em busca de algo, até então desconhecido, um alento na vida, uma profissão que lhe acena com as suas portas entreabertas, mesmo num cenário tão inóspito quanto o que se mostra turvo aos nossos olhos desencantados frente a um futuro incerto.

Tantos e tantos desidérios me cortejam, tantos anseios me induzem a sonhar cada vez mais, tantos e tantos caminhos para onde me dirijo, tantas e tantas trilhas percorridas nos meus mais de sessenta e sete anos, logo entrarei na casa dos setenta, sete anos depois da idade em que me acho agora, meu pai nos deixou. Não apenas exemplos de dignidade e honradez, assim como a capacidade e o desidério inquebrantável de enfrentar as vicissitudes, mesmo quando pertinaz doença nele pôs freio, e como ele resistia a se mostrar incapaz!, graças ao seu desidério de aço.

Quantas e incontáveis vezes tive, depois de tentar conter a emoção e as lágrimas que teimavam escorrer-me da face lívida, tomei-lhe a chave do carro, escondia-a fundo dentro de um armário, escondido no meu antigo consultório, aqui pertinho do sétimo andar onde escrevo e olho a Serra da Bocaina esfumaçada no dia de hoje, graças à graciosa chuva mansa que derrama saúde nos campos da roça, que nem mesmo imagino quantas e quantas foram.

Sei que meu pai, dentro da obstinação e pertinácia que sempre o marcou, o tenho, junto a mim, defronte ao teclado do meu computador, numa foto recente, ele e eu no salão do Rotary Clube, quando foi homenageado como ex- presidente do seu clube, com um diploma de honra ao mérito, título merecido, fotografia até hoje para mim inspiradora dos bons tempos quando juntos nos sentíamos. Embora, mesmo em sua ausência, sinto-lhe a presença a abençoar meus dias.

Como de costume desci a rua antes das sete da manhã. Chovia miúdo, agora serenou.

O dia amanheceu escuro, com uma aragem de frescume lambendo o ar puro, graças à chuva benfazeja que me fez acordar com seu ruído característico, com seu tiquetaquear no vidro da janela, a mesma das duas bandeiras de onde se permite ver a velha seringueira verde, quantas vezes a citei nos meus textos, chamando-a de árvore desterrada, como ela deve sentir a falta do seu rincão!, a quente e úmida Amazônia, manancial hídrico de todo planeta, o qual os homens teimam em destruir, poluir, tirar a poesia que antevejo na natureza, ávida por decantar toda a sua beleza, desde o ártico ao sul, de leste a oeste, até onde a vista descansa, farta de tanto olhar as coisas feias que infelizmente se mostram pútridas, principalmente no país lindo onde a gente não apenas mora, como idem ama, a combustão de uma paixão que atordoa, inebria, nos faz, quando em viagem ao exterior, sentir que o melhor de uma viagem longa sem dúvida é o retorno, não com as malas cheias de quinquilharias, e sim com um cabedal imenso de conhecimentos, que só fazem enricar nossa cultura.

Ao descer a rua principal, naquela hora bem cedo, nesta manhã de sexta-feira, dia três de fevereiro, o Brasil se preparando para as festas de Momo, não eu, ao passar pela Igreja Matriz, já de portas abertas, onde deveria acontecer uma missa, foi quando pensei nos meus desidérios matinais.

O primevo pensamento me levou para bem perto. Para os pastos da minha roça, agora entregues às mãos expertas de um amigo. As minhas ex-vacas, por ele compradas, a preços justos, foram o segundo desidério do dia de hoje.  Que elas sejam felizes, que se alimentem bem, que tenham fartura no cocho recheado de trato, seja de silagem de milho, ou de cana picada de fresco. Que o touro, seu amante e amigo, continue a cheirar-lhes o traseiro, pressentindo-lhes o cio. Que o montador, do qual invejo a fecundidade, seja feliz em fazer tantos filhos, melhor filhas, para continuar a fazer crescer o plantel do amigo Roberto. Que a roça de milho plantada produza bons frutos. Espigas enormes, duas, três, em cada pé de milho quase maduro. Fazem parte dos meus desidérios, nesta manhã madrugada de sexta-feira, bendito será o sábado, quando irei ver, em carne e olhos, como anda a construção da minha casa de campo, olhando de sentidos atentos a represa do Funil.

Outro desidério, que me deixou em sobressalto, na manhã de hoje, antes da seis da manhã, deixando a roça de lado, ao passar pela Igreja principal, foi desejar saúde a minha família todinha. Que eles todos entendem meus arroubos de ira, quando ela se apossa de mim. Caso esses momentos, os quais execro, de novo aconteçam, não façam caso deles, da mesma forma que não fazia quando meu pai insistia, na sua moléstia, tomar a chave do carro de minhas mãos, e dirigir ele mesmo, quando sua inabilidade não se mostrava prudência, e ele não fazia caso da minha, e da nossa família, quando a gente, pensando no seu bem, tentava impedir as suas idas e voltas à casa de Camargos, pra onde ele ia só, pondo em risco iminente não apenas a própria existência, bem como a felicidade nossa, já que ele era razão principal de nos sentirmos assim.

Desidérios são tantos, de vulto, que retorno a falar deles.

Mais um, ou dois, se me permitem enumerá-los.

Desejo, no dia de hoje, de amanhã, dias futuros, os de ontem já acontecerem, e nada posso fazer para mudá-los, é que as pessoas as quais considero amigas, mesmo aquelas que pouco conheço, são muitas, a maioria, não façam caso das minhas brincadeiras. Quando, num gracejo inocente, numa palavra que pode causar revolta, se por acaso ficarem assustados, ou levarem a mal, pensem nos palhaços de narizes vermelhos, vestidos em trajes espalhafatosos, que cada vez mais desaparecem dos picadeiros, tornando a vida mais infeliz. Não apenas das crianças, bem como da criança que um dia fui, e não voltarei a sê-lo. Sei que não tenho a carteira assinada por algum circo mambembe, de palhaço das perdidas ilusões. Como também sei que minhas traquinagens de moleque artioso, felizmente, ou ao revés, ainda se mostram à luz do dia ou no debrum das tardes longas.

Meu derradeiro desidério, peço-lhes, mais uma vez, que seja a última, não me levem a sério. Pois considero, as pessoas sisudas ao desvario, importantes no contexto da vida nossa do dia após dia. Mas, ao lado delas, tomara aquelas que bulem (não os praticantes de bullying) com os outros, dirigem gracejos a desconhecidos, muitos se tornam amigos, e consigam desfranzir o cenho, sorrir novamente. O que ainda é tão importante quanto o ar que respiramos.

 

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