Cavalgando, sem montaria, nunca teve um cavalo por entre as pernas, o jovenzinho menino, nascido e criado na roça desde quando veio ao mundo, num dia lindo, o qual nunca elegeria para me despedir dele, Jacintinho, apelidado no diminutivo por ser miudinho, notabilizou-se pelo bom humor salpicante, pela simpatia reinante, pelo jeitinho brejeiro de se dirigir aos outros, sempre pilheriando em velórios, quando ali estava por ser sepultado um sisudo homem do mato, distribuindo alegria onde antes a tristeza imperava, com sua carantonha enfezada, contando piadas, espalhando gracejos, bulindo com um, repetindo a dose com outro, por uma simplesinha máxima: se ele era alegre, feliz, por que não tentar repartir com os demais um cadinho dessa felicidade, tentar fazer sorrir quem não tinha o salutar hábito de mostrar os dentes, mesmo um tímido sorriso banguela? Por que ele, vindo ao mundo pobre, nascido no meio de um sarandi danado, sem nunca ter passado os olhos num livro mesmo que cheio de figuras apenas, somente letrado de desenhos animados, pois não bem entendia as letras, quanto mais elas todas unidas em palavras longas, para ele hieróglifos indecifráveis.
Na escolinha rural, onde passou os melhores tempos da sua infância, perdida na lembrança, era tido como o palhacinho vesgo, pois fazia micagens torcendo os olhos pro lado direito, ficando irreconhecível naquela roupa de palhaço, nariz de palhaço, rosto todo pintado em branco e vermelho, para virar um palhaço verdadeiro não lhe faltava quase nada. A não ser os aplausos da platéia, cada vez menos frequentes nos circos de lonas furadas, que mais e mais desaparecem das grandes cidades.
Quis a vida, o meio de sobreviver dentro dela, cada vez mais difícil, a crise na roça mostrava a roça de milho perdendo as espigas, a porcada emagrecendo, o leite perdendo preço, logo na estação chuvosa, os insumos mais e mais defasados, com os preços no andar de cima, ao contrário do preço do subproduto das tetas das vacas, um dia Jacinto, já quase maior de idade, faltava-lhe um ano apenas para completar vinte e um, o alegre e salpicador de bom humor dobrou a porteira torta, pegou carona no caminhão leiteiro, e partiu, sem olhar para trás, as pastagens que tanto amava, a casinha tosca onde nasceu, as vacas pelas quais demonstrava carinho e um respeito que lhes extrapolava os chifres, os úberes cheios de onde vazava leite, as crias que berravam de fome, as galinhas caipiras que botavam na moita, protegendo os ovos, dos quais nasciam ninhadas de pintos amarelinhos, muitos eram presas fáceis dos tucanos e dos gaviões.
Jacinto moço, trazendo na mochila gasta além de algumas trocas de roupa, coisas velhas, sem valor, algumas parcas economias que o pai trabalhador deixou numa carteira herança do avô materno, não se esqueceu jamais da fama de rapaz alegre, brincalhão, que adorava lançar, mesmo a desconhecidos, ao descer ou subir a rua principal da cidade onde veio morar, no lindo estado das Minas Gerais, bons dias a esmo, bulindo com um, proseando com terceiros, contando piadas de gente da roça que nunca foi à cidade, assim ia indo, até que bem, quando, num dia de azar ao quadrado, deu de cara e fuça num sujeito de estopim curto, cujo trabalho já conhecia, desde tempos recentes.
Como ele estava no seu carrinho azul, de janelas abertas, dia de muito calor, não humano, como aquele que brotava de dentro do cerne do garoto não mudado, ainda, felizmente, não transformado em mais um que não gostava de brincadeiras, o motorista do auto tinha o humor de cão rusguento, ao ser apresentado a uma senhora morena, a qual não conhecia, foi introduzido a pessoa dela pelo condutor do carro como sendo sua amante, depois passou a esposa, Jacintinho já conhecia a anterior parceira do motorista, uma loura de traços bonitos, foi quando, num átimo de alegria, quando, inocentemente a tal senhora, lembrando-se das vacas baldeiras do pais, pelas quais caía de simpatia plena, na intenção de elogiar a fêmea, que tinha tetas de fazer inveja à vaca mais baldeira do plantel do pai, a ela desferiu um comentário em puro tom de chiste jocoso: “quantos litros de leite a senhora dá”?
Tão logo aportou no trabalho, um laticínio de boa marca, deu de cara com o oficial de justiça trazendo na mão uma intimação para comparecer à delegacia. No mais breve espaço de tempo.
Assim o fez. Não levou, pois não tinha como pagar, um advogado que o protegesse do mau humor do denunciante.
Após o depoimento, que durou quase o dia inteiro, foi tratado como um facínora de alta periculosidade, quando o seu crime, se é passível nomear de crime a alegria e o bom humor, foi levado à cadeia, sob a acusação de injúria, não racial, pois jamais lhe passou pela cabeça chamar ninguém de preto, ou coisa de mais valia, simplesmente, como amava as vacas, principalmente as boas produtoras de leite, esgotando-se os argumentos em sua defesa, quantos bandidos de verdade continuam soltos, acontece que o pobre Jacinto se deu mal.
Ontem fiz-lhe uma visita de amigo dentro da cela lotada. Entre os encarcerados mal cabia uma sombra apenas. Eram dez pobres, entre eles negros, gente que não pode pagar pensão alimentícia, motivo, estava desempregado, e uma prostituta que se deu mal numa rodada de bolsinha, por esse exato motivo foi trancada, naquele catre imundo, sem qualquer condição de recuperar qualquer ser humano.
Naquela curta meia hora, ao me ver, lado a lado, com o pobre Jacinto, condenado simplesmente por ter dito, à pessoa errada, uma piada de mau gosto.
Mesmo entre grades, mofando naquela cela infecta, sem o menor indicativo de higiene, se alimentando do conteúdo de uma quentinha diminuta, onde se via um naco de arroz com feijão preto, um ovo frito, mal passado, por cima daquilo que não se pode chamar de refeição digna, até os ratos evitam, e como tem ratos por lá!, na despedida do pobre enjaulado Jacinto, que não pôde pagar a importância de quatro mil reais como acordo prévio, para não sofrer processo, ainda percebi a enfeitar-lhe a face um imenso sorriso farto.
Tive notícias do querido amigo Jacinto um ano depois. Ele, afinal, foi solto das grades, sem comprovação de crime algum. E saiu, segundo me contaram, sorrindo de orelha a orelha, irradiando de dentro dele todo o seu bom humor. Qualidade preciosa, tão em falta nos dias de hoje. Tomara não para sempre…