Que mundo é esse, de tempos presentes, quando o bom humor, a alegria, os afáveis cumprimentos, os chistes atirados não na intenção de ferir, ou magoar, a um ou outro, pessoas a quem considerava amigas, e, no entanto, causando-lhe espanto e desencanto, a tal pessoa, acompanhada de outrem, uma terceira que não conhecia, depois de receber uma pilhéria inocente, desferida num instante de alegria, ao virar as costas as tais, com quem tinha o costume salutar de brincar, uma vez distante de ali, numa conversa nada amistosa com uma pessoa familiar, nascido do próprio sangue, este advogado brilhante, injuriado com o acontecido, vem, numa atitude desrespeitosa, dizer, em tom agressivo que o chiste, sem intenção de causar qualquer injúria a quem desferido, pode ser motivo de processo, na intenção única e intencional de auferir lucro ao tal que se sentiu ofendido.
Que mundo é esse, quando, na intenção única e indelével de tornar o ambiente, antes taciturno e sombrio, a gente tenta alegrar o convívio das pessoas envolvidas em querelas que em nada tentam mudar o status quo, desfazer o mal estar dos circunstantes envolvidos, passamos perto de lá, naquele cenário carregado de nuvens cinzentas, e tentamos retirar, num átimo inusitado, as mesmas nuvens carregadas e ver em seus lugares o sol de novo brilhar. E as mesmas pessoas, com o coração cheio de rancor, por motivos que não fazem justiça ao lindo dia que se inicia do lado de fora da janela, permitindo compreender que depois da chuva forte de novo o céu se abre, pois dias existem de um jeito, noutro a cara do dia emburrado de novo se abre com todas as cores do arco-íris, até em cores novas, tudo vai depender do desejo das mesmas pessoas, infelizes no instante, e no seguinte, num estalar de dedos, tudo se descortina quando a mesma tristeza transmuda-se em felicidade, pois nem sempre o estado em que a gente se encontra condiz com aquele que nos vai dentro de nossa alma.
Ontem foi um dia de cão. Não de um cãozinho de madame, todo lindinho, saído de um pet shop depois de um banho no capricho, depois de ter se alimentado com a ração mais cara da loja, ostentando na coleira nova enfeites de brilhantes puros, latindo sem entender as desventuras de um cão vadio, abandonado a sua sina simplesmente por ter deixado de ser um filhote comprado na feira de cães por uma mixórdia, na rua da amargura, cavoucando as sobras de um saco preto, faminto, sem eira nem beiral, pressentindo-lhe a morte iminente, ou debaixo das rodas de um auto em movimento, ou depois de receber maus tratos num canil municipal, ou ser caçado como animal peçonhento, sem ter nenhuma peçonha correndo em suas veias nada azuis.
Tive contratempos, fui submetido a acontecimentos nada louváveis, fatos que me marcaram por dentro como um punhal ensartado fundo dentro do meu peito, dotado de uma sensibilidade única. Mas, tudo passa, como passou, não sei qual serão os desdobramentos do ocorrido no dia de ontem, tomara a justiça seja capaz de bem discernir o joio do trigo, com a sabedoria atribuída a Salomão, deixo aqui escrito que ele não foi do meu tempo.
Ontem, no cair da tarde, debruçar da noite, depois de malhar na academia de um clube que amo ao desvario, de nadar por alguns minutos apenas, deixei a piscina sem ter enfrentado na raia linda e azul dois grandes nadadores, verdadeiros campeões, tanto na força de suas braçadas longas, quanto no caráter íntegro que lhes marca a juventude.
Gostaria de fazer uma vistinha rápida a um amigo. Seu pai estava na mesma academia onde frequento diuturnamente.
O que me fez ir a casa onde meu amigo mora foi a notícia nada auspiciosa que seu pai me deu.
Meu amigo estava caído, por baixo, num estado lastimável de depressão. Os motivos responsáveis por tal enfermidade d’alma são vários: desde a genética, passando por traumas vivenciais, a um estado de desemprego, de falta de renda, ao ver um filho, uma filhota inda, sem perspectiva de estudar numa boa escola, ter notas altas, antever, a frente, um futuro alvissareiro sorrir em sua direção.
O tal amigo mora na casa dos pais.
A esposa, a qual ama a combustão, antes sofrendo com a separação, agora de novo se preparando para enfrentar a vida de braços dados, da mesma forma não tem trabalho, muito menos renda, que a ela possibilite viver a vida ao lado do amado, juntinho a filha querida, fruto do amor entre os dois.
Eles ainda vivem cada um no seu canto. Passando por desencantos, contrariedades, todo o tipo de dificuldade, inerentes a vida a dois.
Ontem bati à porta do apartamento do meu amigo. Com quem passo momentos de pura amizade e alegria na mesma academia de um clube que fala bem perto do meu passado, na Rua Costa Pereira, onde moraram meus pais.
Depois de interfonar, da portaria do edifício, daqui de onde escrevo quase o vejo, na sua fachada cinzenta, como o céu hoje se identifica, o amável porteiro me afirmou que não havia vivalma naquele amplo apartamento. Seus donos não estavam. Ninguém respondeu ao interfone.
Mesmo assim subi ao andar indicado pelo guardião do prédio cinza.
De repente me vi defronte a duas portas fechadas.
Com o dedo indicador toquei a campainha da porta fechada do segundo andar. Do lado de dentro nada de resposta ao meu chamamento.
Virei os olhos em direção a porta de frente. Ela tinha na cara o número 202. Nada de algum morador me atender. Ficou muda a campainha. Pelo visto, mais uma vez, vi frustradas as minhas tentativas vazias de adentrar por aquelas portas fechadas, naqueles corredores escuros, vazios, naquela tarde noite do dia de ontem, quando tentava visitar um amigo enfermo.
De repente, vindo do nada, de onde, não sei, uma pessoa, já passada do tempo, olhos encovados de desalento, achegou-se a mim.
A princípio assustei-me frente a presença repentina, de um vulto aparecido perto de mim. Não lhe perguntei o nome. Não fiz questão de saber quem ele seria. Se um parente de algum morador, talvez das duas unidades fechadas, ou um visitador, como no meu caso.
Após o susto passado, depois de ver-me aquietado o espírito, o senhor, aparição fantasmagórica que se fez presente, naquele corredor escuro, ainda não iluminado pela luz da manhã, me explicou, placidamente, quem morava em cada apartamento.
No primeiro, em cujo pensava morar meu amigo que sofre de depressão, viveu, agora não vive mais, um senhor que perdeu a esposa e os filhos menores, num fatídico acidente de carro.
No da frente não mais moram parentes perto, os quais faleceram há pouco tempo, vítimas de cruel e pertinaz enfermidade.
Despedi-me do prédio, deixando o corredor vazio, sem meu interlocutor, sem saber quem morava nas duas portas fechadas nas quais bati.
Só depois vim a descobrir que no apartamento de número 201 morou a tristeza. No apartamento contíguo morava a saudade.
Eu deixei o prédio cinzento, pensando na vida. Que saudade dos velhos anos, quando o bom humor, a alegria, a felicidade eram companhias inseparáveis da honestidade. E ninguém processava a outrem, querendo compensações em dinheiro, simplesmente por alardear aos quatro ventos que se sentiu melindrado por ter ouvido da boca de alguém, do qual se pensava amigo, qualquer comentário feito sem a menor intenção de ferir ninguém…