A mulher que não dormia

Distúrbios do sono, ficar de olhos estatelados, sem deixar que as pálpebras se fechem, tendo medo da noite soltar seus pesadelos, como em criança ter medo do lobo mau, da mula-sem-cabeça, do navio pirata da perna de pau, são puras invencionices dos adultos, historinhas contadas no intuito de fazer a criança, que não mais existe dentro de mim, talvez por esse motivo durma tão pouco, acordo antes do padeiro ou do retireiro madrugadores, levanto-me mais de duas vezes durante a pseudo-noite, penso que dormir é um desperdiço de tempo, período longo demais que a gente fica sem nada produzir, ou pensar, ou sofismar, como queiram ou não, podem crer: de nada adiantam os tais indutores do sono fecundo, medicamentos de tarja azul, todos causam dependência, de uma forma ou doutra, fazendo-nos reféns do receituário médico, pobres das pessoas que dependem deles para tentar pregar os olhos, durante a escuridão da noite, e se não conseguem o tal papel avidamente disputado nos postos de saúde do SUS passam de esculápio a outro, até conseguirem, afinal, o tal fármaco miraculoso que nada mais é que uma panacéia ilusionista, tal e qual o mágico que tira coelhos da cartola, quando o roedor já ali estava à espera da sonhada cenoura desde quando ela foi plantada na horta de couve.

Como afirmei de outra vez, numa crônica recente: “Tenho receio da noite”. Leiga observação, a meu entender, de profissionais que se dizem especialistas, sou contra os médicos que afirmam ser estudiosos apenas do olho direito, deixando o par ao desalento, ou que se dão melhor ao tratar a retina, quando o olho é um todo indivisível, ou também do médico que afirma ser bom mesmo quando trata da hemorróida dolorida; por favor, mais uma vez tento passar adiante que o urologista não trata das enfermidades ano retais, e sim da glândula prostática, examinada pelo toque, esgueirando-se o dedo naquela cavidade cúmplice das hemorróidas e outras inconveniências maiores, quando aparece um colega que diz que o descanso da noite ajuda a encompridar a vida, passo adiante a informação. E não a encontro conveniente.

O fato de dormir bem pouco em nada afeta a minha rotina. Tanto de médico generalista, ou de especialista que entende não apenas dos queixumes localizados à direita ou a esquerda, tanto faz, tanto fez, mas que tenta compreender as mazelas do paciente por inteiro. Se são dificuldades reais ou da alçada de um psiquiatra, embora esse médico por vezes lança a caneta em prescrições de tarja preta, remédios que se não curam pelo menos atenuam as moléstias da alma, cada vez mais prevalentes na escala zoológica, da qual fazemos parte como animais ditos racionais entre os quais nos incluímos.

Hoje cedo, nesse dia lindo, findo o mês de janeiro, em pleno verão, ao subir a rua de onde moro, percebi, no passeio do lado, uma senhora clara, de feições simpáticas, com a qual me cruzo quase sempre em horas tempranas.

Via de sempre a ela cumprimento com um cordial bom dia. Ao que ela me retribui com igual lisura.

Hoje não me fugiu a mesma observação bem pertinente.

Indaguei se ela não dormia a contento. Ela de pronto, descendo a rua no sentido revés, prontamente respondeu, educadamente: “Sim, tenho dificuldades enormes em conciliar o sono. Nem mesmo o Rivotril dá conta de me fazer dormir direito”.

Fiz a ela, como médico não especialista apenas em noite mal dormida, bem como nas de melhor descanso, uma receita, de boca, não tinha a tal folha azul, disputadíssima em unidades de atenção primária a saúde, para prescrever-lhe a receita de outra droga, de efeitos colaterais menos importantes, ao invés de Clonazepan a ela receitaria o Bromazepan, no que ela me agradeceu penhoradamente. Naquele curto entrevero ainda tive tempo de recomendar àquela senhora trabalhadora que fizesse cansar seu corpo em atividades físicas rotineiras, principalmente antes que a noite nela fincasse suas garras sonambulentas.

Não mais nos veremos no dia de hoje, quiçá amanhã, às mesmas horas.

Na manhã seguinte não passei os olhos naquela senhora. Nem nas outras manhãs madrugadeiras.

Um mês se passou, desde a última vez. Perguntei ao amável e amistoso porteiro por onde andaria a senhora clara, da qual não sabia o nome, por qual apelido era chamada, onde exercia a função de doméstica, se tinha filhos, um marido ausente, ou se ao menos era feliz, como não aparentava. À primeira passada de olhos.

Foi quando o Valdeci, o profeta, apelido que ele tem, por vaticinar os acontecimentos do condomínio onde moro, me fez sabedor de que aquela senhora, pela qual quase sempre passamos, um ao lado oposto do outro, nas manhãs bem cedo, antes de o sol nascer, havia perdido mais uma vez o sono. Ela saiu em direção ao trabalho. Na mesma hora costumeira. Não chegou ao condomínio de alamedas verdes, onde pássaros cantam, mostrando a felicidade em seus cantos alegres.

Foi quando o amistoso e simpático porteiro Valdeci me informou, não sei se posso confiar em seu conto, que a dona clara, que não consegue dormir sem os tais medicamentos avidamente disputados em postos de saúde pública, ou em consultórios de psiquiatras, que a tal mulher, insone, acabou virando coruja, que sonambula todas as noites por cima de uma árvore a qual fez de poleiro, a sua própria casa, desde que a vi pela derradeira vez.

Foi quando, na manhã de hoje, dia 31 de janeiro, dia lindo, quente e seco, tomara que mais tarde chova, ao subir a rua como sempre faço, ao procurar a tal mulher a qual não a via desde há tempos recentes, ao olhar por cima de uma linda Murta, árvore símbolo do condomínio Jardim das Palmeiras, vi, juro não ser mais uma invencionice minha, uma linda coruja branca, de olhos arregalados, ave que me cumprimentou com uma amistoso bom dia. No que eu retribui-lhe a amabilidade com outro cordial ótimo dia…

 

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