Nem todas as segundas se assegundam. Trocando em miúdos: nem todo mundo aprecia o primeiro dia da semana, melhor as sextas, pensa a maioria.
Já eu, médico que não dá plantão, ainda ativo na profissão, de férias no serviço público, por uma semaninha apenas, na próxima volto a envergar a batina de quem sofre na pele as mazelas de quase nada poder fazer, a não ser torcer que doenças graves fujam do pobre usuário do SUS, não creio que nem todas as segundas são como aquela tia do Sebastião, malvada mulher solteira que não se casou por motivos óbvios, ruim como sói ela era. Ao revés, considero as segundas, principalmente como a que começou no dia de hoje, dia lindo, sol a pino, céu azul ao maior decibel, dia ideal para dar início à semana, que com certeza será um lindo final de janeiro, logo entra em campo fevereiro, vamos dançar o carnaval?
Um inusitado e feliz acontecimento teve espaço nessa manhã sorridente.
Assim que iniciei meu computador, que nem em finais de semana tem descanso, quase todos os sábados, ou domingos, assim que passo por minha rocinha, ou depois de uma corrida qual carro, louca, aqui venho para escrever, observei que o velho par de óculos para enxergar de perto foi deixado de lado, descansado, sem carecer de seus préstimos, e suas lentes fracotas tornaram-se obsoletas.
Tenho indubitável certeza de que esta segunda vai dar começo a uma excelente semana. Toda ela carregada de alegria e bom humor, com o sol rugindo seus dentes amarelos, entremeada de chuva que cai serena durante a noite, refrescando o ar quente de um verão que nos assiste no hemisfério sul do mapa mundi.
Mais um fato que torno público e notório comigo sucedeu nessa manhã do dia trinta de janeiro. Como sempre faço da cama de gato e sapato novo e apertado. Logo me desvencilho dela, antes das cinco, e dela me ejeto muito antes das seis da manhã.
Passo duas mãos abertas de água fria para me tornar desperto. Deixo a mesma água da torneira da pia do meu lavado ensaboar a cabeleira rala, quase um campinho de várzea onde moleques jogam peladas nos finais de semana ou quando em férias.
Depois de testar como anda a minha próstata idosa, como anda o meu xixi, se ainda gotejante ou emerso em um jato mediano, vou à poltrona branca, vizinha da mesma cama, para vestir a roupa da semana já previamente estendida ali, desde a noite anterior.
Hoje a escolhida foi uma calça escura, tal peça de vestuário comprada em Portugal, de onde cheguei faz um cadinho de tempo, usada nas academias de ginástica onde atletas, como eu, passam horas e minudências se exercitando, pensando encompridar a vida ou alongar os anos que lhes restam.
Acontece, como de vezes antes, acabei vestindo a calça pelo avesso. Logo me dei pelo meu logro. E a enverguei pelo lado certo.
Durante a caminhada curta até o meu consultório fui me lucubrando como seria um homem ao revés.
Ter uma roupa usada pelo avesso é missão fácil de ir do contra. E só descobrir o engano e desvestir a peça do lado certo. Mas, como seria ser um homem, uma mulher, ou coisa de mais valia pelo lado avesso, ou ao revés?
Desde que a gente foi feita, com todo capricho pelas mãos sábias de alguém que nos espreita do alto, a pele, seja tinta de branca, de amarela, ou escura como jabuticaba madura, tanto faz, tanto fez, é o invólucro capaz de proteger o que vai por dentro das intempéries múltiplas que a inclemência do sol, a friagem do ar no inverno, dos ventos que assopram com seus lábios sussurrantes, ou de qualquer fenômeno climático do qual a intrépida natureza mostra a sua presença.
Do lado de dentro da pele se aloja o tecido subcutâneo. Com seus vasos arteriais e suas veias azuladas. Mais abaixo, olhando do lado do alto ao pé que tanto esforço faz nas minhas caminhanças diárias, na calota craniana logo a seguir do cabelo, muitos pouco os têm, fica um osso duro de morder, que os digam os cães, caixa que aloja o cérebro, de onde partem as ordens para o batalhão de outros comandados que moram mais abaixo. Imaginem se o centro nervoso ficasse exposto à luz do dia? Como os nossos neurônios se sentiriam? Mal, concluo.
E as estruturas importantes que passam pelo segmento que liga a cabeça ao resto do corpo? A coluna cervical, por onde passa o alimento, o esôfago, o ar que a gente respira, cada vez mais irrespirável, caminhos por onde passa o sangue, que nutre o que vem por baixo, o que seria de todos eles caso fossem desprotegidos de pele? Músculos cervicais, um naco da coluna, todas as demais estruturas mostrando-se nuas e cruas a quem quisesse, na rua, vê-las todas à vista desarmada?
E o que aconteceria ao tórax, morada dos dois pulmões, do mediastino, do coração que tanto pode esconder a bomba que empurra o sangue naquele sobe e desce que nos mantém vivos, quanto pode ser o alojamento onde mora o amor e a paixão? As dores e dissabores, a infelicidade e seu oposto, a alegria?
Mais abaixo, em direção a terra, onde meus passos caminham, fica o baú que acolhe outros órgãos afins: os intestinos, o estômago, muitos o tem insaciável, dois rins, quando um não foi retirado pelo urologista, ensejado por uma pedra incrustada ali, que os fez irremediavelmente perdido, outros aliados responsáveis pela digestão, não preciso nomeá-los todos, pois iria alongar em muito meu escrito, o que seria deles e de nós, seus donos, caso ficassem do lado de fora, expostos à execração pública? Uma túrbida e insossa realidade cruel. Péssima para olhar uma linda mulher nua, com suas vísceras todas nuas, ao revés dos lindos contornos que sua pele de pêssego maduro mostra em indeléveis detalhes, com suas curvas pecaminosas, com suas protuberâncias cheias de trejeitos, com ondulâncias que sempre levam ao pecado. Ao prazer carnal e à luxúria pura.
As pernas, os joelhos, os pêlos das coxas das mulheres que não se depilam, caso ficassem ao revés, sem a cobertura da epiderme, à mostra aos olhos desnudos dos admiradores, meu bom Deus, que me perdoe a ousadia, seria mais um descalabro ver tudo ao avesso.
Por tudo isso, acima descrito, com nuanças de realidade, podem dizer que fui real ao exagero, mostrando-nos ao revés, do lado avesso, como vesti a calça escura na manhã de hoje cedo, não teria a beleza das flores de uma azaléia florida. Nem ao menos o cheiro da Murta, que de pouco se despetalou. Muito menos as lindas cores da aquarela do arco-íris. Que não tenho visto nos últimos tempos.
No término deste meu escrito, afinal, agora são oito e meia da manhã, desta segunda –feira linda, por favor, lhes imploro, não me deixem ao revés de mim mesmo. Jamais, nunca, nem um minuto sequer. Se já não sou lindo do lado certo, como seria expor-me as entranhas? Um ledo e malogrado engano. Tenho dito…