Ainda bem que tenho a minha veinha

Envelhecer é inevitável. Viver só, opcional.

Ao final da vida carecemos, não só da presença dos filhos ao nosso lado. Mas quando a impossibilidade existe. Por que não acompanhar-mo-nos de uma pessoinha. Que seja da mesma idade nossa. Ou alguns anos mais novinha?

A solidão pode doer em nosso peito. Se tornar um fardo pesado as nossas costas.

Envelhecer denota precisar. Não mais somos aqueles. Fortes, de caminhar ereto. Olhar esperto. De sono alongado. Sem doenças a nos incomodar.

Uma vez idosos uma bengala só não basta. Carecemos de um ombro amigo onde possamos apoiar nossas passadas claudicantes. Onde a gente possa falar de amenidades numa prosa boa quando a tarde chega. E quando a noite assume o comando do dia e a lua nasce. Essa pessoinha conta pra gente historinhas de ninar. Como se fossemos criancinhas sonolentas a espera da mãe que vem e nos acalenta. Contando pra gente coisas que ela fazia quando da nossa idade.

Uma vez velhos precisamos de amparo. Já que nosso caminhar se torna dificultoso. Um passo depois do outro. Isso quando a gente ainda pode sair de casa. Sem dar trabalho aos nossos cuidadores. Quando temos a ventura de tê-los ao nosso lado. Já que os filhos ingratos não nos visitam mais.  E nos deixam mofar numa casa de idosos.  E sobrevivemos toscamente à custa de uma reles aposentadoria. Que mal cobre nossas despesas.

Ser velho não é padecer no paraíso. Vida boa sim é quando ainda jovens. Sonhando de olhos bem despertos. Com um futuro alvissareiro. Ao lado de nossa família incluindo nela a mulher que a gente ama.

Quando chegamos ao final do caminho infelizmente não se pode andar sozinho. Já que a gente esquece quase tudo. E nem nos lembramos onde deixamos a dentadura. Ou aquele monte de cartas de amor que escrevemos pra elazinha. Já descoloridas pelos anos.

O velho carece de tudo um pouco. Principalmente de afeto e carinho.

Tenho um amigo, bem velhinho. Cujo nome começa por Juca. O resto ele esqueceu. Não importa. O que conta é que Seu Juca já passou e muito os tantos anos. São tantos que o calendário não da conta de dizer quantos são.

Seu Juca, com aquela vozinha fanha, costuma dizer: “não faço anos mais. Desfaço-me deles a cada ano que passa”.

Ele é uma pessoinha admirável. Foi de tudo um cadinho.

Na mocidade foi pedreiro. Marceneiro nas horas de ócio. Padeiro do próprio estabelecimento. Verdureiro que dava verduras de sua própria horta.

Casado por mais de cinquenta anos com dona Mariquinha. Seu primeiro e único amor.

Ela ainda vive. De vez em quando às turras com seu marido. Ele aos mais de noventa; ela beirando os cem.

Dona Mariquinha é quem dá ordens em casa. Quando ela diz não, obedeça. Seu Juca não se faz de rogado. De cabeça baixa responde: “não é não”.

Mas quando ela diz sim Seu Juca não acredita. Pensa estar sonhando. E faz o que ela manda.

Já faz mais de um século que eles se conhecem. Foi no rela do jardim que o namorico começou. Foi ela a primeira e única namorada. Seu primeiro e derradeiro amor.

Agora, que o tempo passou. Anos se sucederam. De vez em sempre Seu Juca ainda leva flores pra sua amada. Rosas do seu jardim. Que ela cuida e ralha com ele quando Seu Juca colhe.

Eles vivem na maior harmonia. Isso quando Seu Juca não desobedece as suas ordens.

Foi nesse final de semana que o encontrei. Foi um encontro fortuito bem ao acaso de um descaso.

Ele estava prestes a dormir. Já de pijama Seu Juca quase fechava os olhos. Era de seu costume acordar bem cedinho. Dormia abraçadinho a sua amada Mariquinha.

Quando ali cheguei já passava das oito da noite. O céu já estava escuro. A lua brilhava nas alturas. O sol esfregava os olhos.

Seu Juca me recebeu com um cordial boas noites. Penso que ele não apreciou muito a minha visita.

Para não perder o amigo prometi ir embora mais cedo. O que ele aquiesceu de bom grado.

Dona Mariquinha não estava. Perguntei por elazinha.

Seu Juca, esboçando um sorriso. Confidenciou-me, não sem antes me pedir que guardasse segredo.

“Olha. Minha veinha foi visitar nossos netinhos. Ela volta na semana que vem. Não sei o que vou fazer sem ela. Ela quem descobre onde deixei minha dentadura. Minha veinha é quem faz minha papinha. É ela quem me cobre quando faz frio. E quando esquenta ela me deixa dormir pelado. Minha veinha é tudinho pra mim. Não sei viver sem ela. Quando ela partir vou no dia seguinte. Ainda bem que ainda tenho minha veinha aqui juntinho de mim”.

De fato e de direito. Nois, veinhos, não podemos viver sem nossas veinhas. Mesmo quando elas dizem não e a gente pensa dizer o contrário.

 

 

 

 

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