Não quero viver assim

Vida que te desejo plena.

Viver sem plenitude não faz sentido.

Ela deve ser vivida em intensidade moderada. Intensa quando ainda jovens. Amena quando os ventos assopram a nosso favor. Tempestuosa quando uma paixão nos toma pelo coração.

Viver bem é o que todos desejamos. Felizes. Saudáveis. Sonhando sempre com dias melhores. Mudando de acórdão com as conveniências.

Minha intenção é viver mais anos que os meus anos dizem. Agora tenho setenta e quatro. Em dezembro próximo completo mais um ano de vida. Vida esta da qual não tenho do que me queixar.

Nasci num lar bem estruturado. Tive pais amantíssimos. Que tudo fizeram para que me desse bem no porvir.

Minha infância foi feliz. Amigos me acompanharam nos folguedos.

De vez em quando me pergunto: “pra onde foram os meninos da Costa Pereira?”

Bem sei que muitos deles se ausentaram. Não por desejo próprio, pois foram intimados a fazer companhia a outros amigos no céu.

Minha juventude se foi há anos atrás. Fiz-me adulto recheado de responsabilidades. Consorcie-me a uma mulher a qual me acompanha há muitos anos.

Com ela tive dois filhos que me presentearam com três netinhos. Netos são a continuação do que fui e não mais serei.

A medicina ainda me atrai. Nela espero continuar até o final dos meus dias.

Mas sempre, como médico, tenho expressado meu pensamento. Que não muda como o assopro do vento.

Desde que a saúde nos acompanhe. Que o desejo de continuar vivo assopre forte dentro de mim. Que não tenha de usar fraldões. De não mais reconhecer aquele que tanto fez por mim. Que meus olhos não mais vejam a luz que nasce em plena madrugada.  Que não possa caminhar pelas próprias pernas. Que não julgue para não ser julgado por um crime que não cometi.

No momento em que não tenha consciência de quem fui ou de quem ainda sou. Quando minha vontade de não mais existir não for aceita.

Ai sim. Alijem-me de mim. Deixem-me partir rumo ao infinito. Se bem que desconheça se existe em verdade vida depois dessa. Se o paraíso deve ser nalgum lugar especial. Não nessa terra tão maltratada. Tão agredida por quem nela mora.

No dia de ontem. Já era tarde. Quase noite. Fiz uma visita a umas tias avós muito queridas.

Uma delas contava com noventa e nove anos. Sua irmã, um ano a menos.

As duas moram numa casa bem próxima a um hospital. Aquele nosocômio era seu segundo lar. Elas duas mais passavam o resto de seus tempos de vida naquele logradouro. Onde sempre trabalhei na tentativa por vezes inglória de salvar vidas ou atenuar dores.

Duas cuidadoras se alternavam aos seus cuidados.  Numa tarefa árdua de prolongar seus sofrimentos.

A mais nova das minhas queridas tias avós não mais enxergava. Vítima de cruel enfermidade que lhe ceifou uma das pernas. Ela permaneceu, durante a minha curta visita, numa mudez ensurdecedora. Não abriu os olhos um minuto sequer.

A outra, sua amada Irmã. Sorria sem me conhecer. Aparentava felicidade. Sem saber o por quê.

Já era hora de ir embora. Quando aquela que não abria os olhos e não falava. Com sua perna amputada. De olhos cerrados. Assim me confidenciou. Num murmúrio quase inaudível: “não quero viver assim. Tenha piedade. Deixe-me partir”.

Fui embora pensando na súplica daquela senhora idosa. Tem hora que o melhor pra gente de fato é irmos embora pra sempre. Uma vez chegada a nossa hora.

 

Deixe uma resposta