O menino que enxergava pelos olhinhos do coração

Que eu saiba pelo coração não se enxerga.

Aquele órgão pulsátil é feito para bombear o sangue a outras partes de nosso corpo.

E quando ele para é um Deus nos acuda. A morte se prenuncia. A cada dia morremos um cadinho. Até o final de nossos dias morremos sem perceber.

Mas aquele que é dotado de imensa sensibilidade. À falta da visão pode ver a luz do dia de outras maneiras. Basta colocar seu coração a serviço da inspiração. Sentimento de que sou dotado há tempos passados. Até hoje ela me acompanha em todas as madrugadas. E se a ela pedir durante o dia inteiro a tenho comigo.

Bendita sensibilidade! Sentimento inerente a poetas e sonhadores. Que dentro de nós viceja como uma rosa em flor. Despedindo-se do botão que essa mesma rosa foi um dia.

Visão. Faculdade que não pode faltar. Mas aqueles que nasceram sem ela acabam se acostumando a não ver um pôr do sol. O despertar de uma manhã ensolarada. Ou até mesmo uma chuvica mansinha dar um basta na poeira que cobre as estradas de uma cor descolorida de um verdume impar.

Cegos são aqueles que se recusam ver a dura realidade que nos rodeia. Quando guerras fratricidas não têm fim. Quando os ânimos se exaltam numa partida de futebol quando torcidas desorganizadas se engalfinham como bestas feras. Quando pessoinhas inocentes são deixadas a míngua pelas ruas. Sem saber se estarão vivas noutro dia.

Aquele garotinho ainda imberbe. Ao qual fui apresentado noutro dia. Estava tentando mitigar a fome numa esquina movimentada da cidade.

Elezinho. Com sua mãozinha suja. Num semáforo esmolava.

Percebi, num átimo de segundos. Quando por ali passava. Que seus olhinhos vítreos não enxergavam. Tateavam a esmo na escuridão mesmo sendo no clarume de um dia.

Era por volta do meio dia. Os carros apressados mal percebiam o garoto que estendia sua mãozinha naquele instante quando eu passava.

Ele parecia desconhecer minha presença. Mas o vi num repente.

Foi por um minuto que o chamei as falas. O garotinho parou por um cadinho a árdua tarefa de esmolar naquele cruzamento perigoso da cidade. O trânsito era intenso.

Assentamo-nos ao meio fio. Ofereci-lhe ajuda.

“Qual o seu nome”? Perguntei para começarmos a prosa.

Ele respondeu monossilabicamente: “Claudinho.”

“Não tem sobrenome”? Continuei o interrogatório.

E ele novamente respondeu com duas palavras apenas: “não sei”.

Na tentativa de deixá-lo à vontade continuei: “calma. Considera-me seu amigo. Estou aqui para ajudá-lo. Não se faça de rogado.”

Mas ele insistiu na sua mudez.

“Notei que você não enxerga. Isso desde o nascimento? E onde vives? Na rua, não acredito.”

Claudinho não sei de que acabou desabafando melancolicamente.

“Vivo nas ruas sim. Meus pais desconheço. Fui criado num orfanato. Dali me evadi devido aos maus tratos. Esmolo para sobreviver. Vivo do que me dão. Perdi a visão desde os cinco anos, quando levei uma pedrada que me afetou as duas vistas. Agora tenho dez. Aprendi a enxergar com os olhos do meu coração. E quando ele parar ai sim. Estarei preparado para viver na eternidade da escuridão.”

Despedi-me do menino Claudinho pensando na vida. Quantos enxergam e não vêem.

Será que eles não sabem as demais utilidades do nosso coração?

 

 

 

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